São Paulo, terça-feira, 10 de setembro de 1996
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Fala de Serjão é marco político para o PSDB

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Por delicadeza, eu perdi minha vida" (Rimbaud). Seria um bom lema ou epitáfio para o PSDB. "Sem agressividade, você não atravessa a rua, que a carrocinha do Chica-Bom te atropela" (Nelson Rodrigues).
Aí é que é o negócio. Quem viu a entrevista de Sérgio Motta no Jô Soares? Quem não viu não sabe o que é o prazer da vingança, o que é, como dizem os lacanianos, a "pressão paradigmática" em exercício, isto é, o momento em que o "não-dito", o que cala na alma, o que mora no peito do reprimido explode como panela de pressão e vitaliza a verdade.
Eu estava quase dormindo quando fui acordado pelo jorro de um sentimento autêntico: Serjão, com ódio sagrado, sem ar, possuído por uma metralha de autenticidade, botando para quebrar.
Que valor teve essa entrevista de Sérgio? Apenas o ataque a Maluf? Não. Sem dúvida, Sérgio Motta denunciou a coisa pós-moderna do Maluf, de querer transformar a política num grande papa-fila virtual.
Mas foi mais que isso. Foi também um momento de verdade lancinante, que hoje em dia não dá para jogar fora.
Serjão, muito além do ataque ao Maluf, vitalizou a campanha de José Serra (que já subiu para 14%) e foi também uma lição de vida para o PSDB.
Alguns dirão: foi um detalhe irrelevante no dia-a-dia político. Tudo bem. Mas foi o primeiro "manifesto" pós-liberal "sanguíneo" do governo, que resgata a autenticidade do trabalho de FHC e de sua equipe.
Afinal, eles são, tecnicamente, o único grupo intelectual de esquerda que está no poder e que tenta encontrar uma via de acesso à justiça social, para além do consenso de Washington.
É extraordinário e sublime que os "progressistas" não se toquem dessa oportunidade. Sérgio foi radical? Foi. Foi inábil? Talvez. Foi destemperado? Foi. Mas Sérgio explicitou o sentimento de vergonha de ter de assistir calado ao "show" de "donos da verdade e de donos da pureza" que uma velha esquerda reacionária, ignorante e paranóica encena no palco do heroísmo, encastelada em velhos dogmas.
E mostrou a dor de ter de assistir às firulas dos direitistas seculares, com sorriso na boca. À direita e à esquerda, FHC e sua turma dos autênticos do PSDB estão pagando o preço por terem chegado ao poder.
Inveja de FHC
A velha esquerda adora derrotas e adora celebrar martírios. FHC teve a saúde mental de ser um intelectual que se deu ao trabalho de ler Marx e de buscar alternativas de progresso dentro do beco sem saída da "dependência" que países como o Brasil têm, dentro de sua área geo-econômica.
Em 1958, estudaram o "Capital" na USP, um fato que até hoje é analisado com suspeição.
Depois do brilhante ensaio de Roberto Schwarz, comparando essa leitura paulista de Marx com a visão carioca do Iseb, há pouco, um cientista político escreveu um artigo tentando provar que esse estudo de 37 anos atrás já era um prenúncio de conservadorismo latente, consolidado depois na "teoria do autoritarismo", sobre o golpe de 64.
Filósofos e cientistas sociais tentam provar que FHC e amigos não passam de meros deslumbrados com o mercado neoliberal. Até uma senhora acadêmica, daquelas de nome comprido (por que as mulheres "scholars" de São Paulo têm um nome enorme de madames bem-casadas?), escreveu para provar que FHC usava Weber para "trair".
O establishment da esquerda não engole o FHC, por inveja ou rancor. Pode ser que ele se estrepe, mas este homem está tentando modificar o país em vez de só compreendê-lo. Se meteu em política, acabou presidente. E aí, pronto, virou o bode expiatório do fracasso dos reacionários figadais, travestidos de "amigos" do povo.
Enquanto eles ficam com a medalha honrosa dos puros, FHC e o PSDB ficaram com a pecha de escravos de Washington. É duro de aguentar.
O mais interessante movimento de FHC, que foi justamente o de encarar o país real, povoado de políticos com as taras coloniais de quatro séculos, foi transformado em traição de valores sagrados.
Todos os chapas-negras do país, todos os patrulheiros, os inúteis íntegros, os revolucionários de gabinete, todos os trótskis da rua Maria Antonia ficaram com as mãos "limpas" e com o privilégio da "pureza" teórica.
Travesti liberal
Contudo, companheiros, temos de fazer uma autocrítica. No afã (vejam o estilo, "afã", uff!) de fazer a aliança com o PFL, na ânsia culpada de assumir o óbvio da política, o PSDB, já tecido de ambiguidades, já sem a bandeira altaneira dos "burros puros", ficou com vergonha de si mesmo.
No desejo de coadunar pontos de vista, de encontrar diálogos, FHC-PSDB perdeu identidade. Aos poucos foi ficando difusa a diferença entre FHC e o que o distinguia dos aliados. Sem diferença, não há aliança; há deglutição.
Travestido de neoliberal, sorriso e ternos brancos para não levantar suspeitas, foi se esquecendo do que é o projeto do PSDB, se é que ainda há.
E pior, muito pior; isso foi ajudando a alimentar o mito de que "ideologia não é mais nada", de que acabaram ideais mais sutis, ficando só o marketing direitista de que um viaduto é ecumênico, de que "obra não tem bandeira".
Uma nova direita se oculta sob a capa da neutralidade administrativa, ou seja, aproveitando a crise do socialismo, abolem-se todas as opiniões e tudo vira uma grande caretice, um grande "centrão" inofensivo.
E, pior ainda, travestindo-se de "ovelhinha da aliança", o PSDB "tucanizou" o PFL, deixando para ACM a tarefa de ser a esquerda radical. E ACM, com seus méritos de coronel progressista, que melhorou muito a Bahia, cresce como oposição conservadora a neodireitistas pós-pós.
"Saloon"
Foi aí que Serjão entrou no "saloon", puxou as duas garruchas e chamou para a briga. Mas a atitude de Serjão não pode ser chamada de mais uma incontinência verbal daquele gordo radical e ansioso. Não. A fala de Serjão tem o caráter de uma bandeira para o PSDB. Foi um marco político.
Não significa que FHC tenha de virar um truculento brucutu. Mas deixou claro que o PSDB e FHC não podem ser o "hímen complacente" de nossa vida política, "entendendo" do alto tudo que os primitivos políticos façam, como uma tese sobre a sociologia do nosso atraso.
A idéia de justiça social e de reformas tem de ser levantada com ardor para o segundo tempo deste governo, haja ou não reeleição. Os aliados que se modifiquem um pouco também. Senão o PSDB será um travesti. Senão FHC vai continuar se esgueirando pelos cantos, com medo até de que Itamar faça marola. Assim não é possível. FHC tem de explicitar para a população que seu governo é uma crítica complexa e positiva ao liberalismo selvagem.
Foi emocionante ver o Serjão falando na TV em "companheiros nossos".
Serjão, além de ser o Falstaff de FHC, tem de ser também sua Lady Macbeth.

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