São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
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FHC, Marx e Franco

CELSO PINTO

É verdade, sim, que o presidente Fernando Henrique Cardoso ficou encantado com o famoso trabalho do diretor do Banco Central, Gustavo Franco, propondo um novo enfoque para o desenvolvimento. Só que nem sempre pelas razões mais óbvias.
Franco argumenta que o motor do crescimento (e distribuição de renda) é o aumento da produtividade da economia. O presidente vê no enfoque de Franco uma "revolução copérnica", ao mudar inteiramente a perspectiva de entender o desenvolvimento, mas lhe atribui um parentesco surpreendente.
"O que é a produtividade, senão o velho conceito de mais-valia relativa de Marx?", pergunta-se o presidente. "Marx entendeu como ninguém a essência da dinâmica do capitalismo", elogia o sociólogo, que gastou a maior parte de sua vida acadêmica usando ou polemizando com a tradição marxista.
Até onde, contudo, o claro entusiasmo intelectual que Franco desperta em FHC reflete mais do que uma admiração pela insuspeita porção marxista escondida no superliberal diretor do BC?
A resposta correta é: até certo ponto. Franco é o que o próprio presidente não se recusaria a chamar de um "radical". Talvez o último "revolucionário" remanescente do grupo de economistas da PUC do Rio que ajudou a fazer o Plano Real como ponto de partida, e não de chegada, de um projeto liberal. Um projeto que o presidente jamais comprou por inteiro.
É curioso observar que o mesmo trabalho de Franco, que arranca tantos elogios do presidente, contém algumas propostas de política que não coincidem com as do governo a que ele pertence. Inclusive na sua área de trabalho, a política cambial.
Franco investe com vigor contra os que reclamam de uma defasagem cambial. Usa um argumento simples: o câmbio sobe ou desce com o mercado. Se existe uma supersafra de banana, e o preço cai, nem por isso se fala em "defasagem bananal".
Completa com outro argumento mais complexo: com alta inflação, há fuga de capital, menos oferta de dólares, e isso leva a uma desvalorização do câmbio (o dólar fica mais caro). Quando a inflação cai, chovem dólares, e é natural que haja uma "apreciação" do câmbio, ou seja, do valor do real frente ao dólar. "Apreciação" é normal; "defasagem" é bobagem.
Nos dois casos, a noção é que o mercado indicaria o ponto de equilíbrio do câmbio, o que de fato aconteceu nos primeiros meses do Plano Real. Desde maio/junho do ano passado, contudo, apesar de choverem dólares, o real foi desvalorizado, mês após mês, porque o Banco Central comprou os dólares e forçou sua alta. Não houve a esperada "apreciação bananal" defendida por Franco. Por quê?
Porque o chefe de Franco, o presidente, no fundo acredita em "defasagem bananal". Tanto isso é verdade que, em três vezes -dezembro de 1994, março e julho do ano passado-, defendeu uma desvalorização mais forte do real frente ao dólar. Não deu certo em dezembro por causa da crise mexicana, em março ela foi feita de forma desastrada, e em julho foi arquivada por temor da crise bancária.
Mais do que isso, o BC tem, propositadamente, desvalorizado o câmbio, neste ano (4,67%), acima dos preços por atacado industriais (1,55%), como forma de dar mais estímulo às exportações via câmbio. Contra argumentos do trabalho de Franco, mas com o apoio do presidente.
Franco fala, no trabalho, em ampliar em "duas ou três vezes" a abertura da economia, mas 10 entre 10 ações recentes do governo na área do comércio exterior restringiram importações. Franco critica o princípio de programas do tipo do regime automobilístico e a obsessão do governo com grandes projetos e planos de metas, como as anunciadas recentemente por Brasília.
Não há dúvida de que o presidente acha que a economia brasileira pode e deve se abrir mais. Mas o ex-ministro José Serra e o atual ministro Francisco Dornelles, ao restringir importações, nunca agiram à revelia de seu chefe, o presidente.
O sociólogo FHC é capaz de comprar 100% do brilho intelectual de Franco. O presidente aceita 50% do seu "radicalismo" liberal e se reserva o direito de arbitrar entre as posições de Franco e seu contrário. Essa foi e deve continuar a ser a marca registrada da administração atual, para o bem e para o mal.

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