São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
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Os sem-lixo

JANIO DE FREITAS

Não sou versado nas complexidades que transitam pelos fóruns e se decidem, às vezes com sabedoria, de outras só com arrogante prepotência, nas mesas atulhadas dos magistrados. Longe de mim sugerir que decisões judiciais jamais provenham de outras mesas, mas isso não vem ao caso. O que interessa é falar de um processo que transitou com humildade e silêncio, e no entanto merecedor -é a opinião leiga que submeto a julgamento público- de figurar nos anais dos grandes processos da humanidade.
Os nomes dos beneficiários da sentença são desconhecidos. Não figuram no processo. É mesmo duvidoso que figurem em algum registro, seja de que tipo for. Deles há muito pouco a ser dito: sabe-se que têm a sorte de morar em meio ao maior poder aquisitivo médio do país, que é o de Brasília, e estima-se que sejam mil e tantos, das crianças aos muito idosos. Não têm endereço, mas é conhecida sua localização na cidade que é Patrimônio da Humanidade: vivem no Lixão da capital federal.
Dizer que vivem no Lixão é insuficiente. Vivem do, isso é correto, vivem do lixão. São as pessoas e famílias que se mantêm vivas pelo que catam nas montanhas de dejetos coletados pelo serviço de limpeza urbana brasiliense. Fonte de vida que estiveram na iminência de perder, presume-se que com a própria vida, não fosse uma sentença que, mais do que judicial, foi vital.
Pois se deu que a Promotoria do Meio Ambiente do DF entrou com ação pedindo que a Justiça ordenasse a retirada dos que vivem do, ou no, Lixão, próximo do Parque Nacional de Brasília. A promotora que assinou o pedido apresentava um argumento forte: o alto risco de vida para as famílias do Lixão. A sentença determinou a retirada.
É meio difícil imaginar que risco de vida podem ainda correr as pessoas que dependem do que catam no lixo. Pessoas cuja vida é tirada do lixo sem dele sair. Ficamos dispensados de imaginar a resposta graças ao recurso judicial do Serviço de Limpeza Urbana, citado para fazer a retirada que não tinha como fazer.
Dirão que o desembargador Carlos Augusto Farias é inimigo do meio ambiente, manteve o Lixão e o risco de vida, dirão as coisas fáceis de dizer. Sua sentença no recurso ordenou ao SLU a adaptação da lixeira às normas sanitárias. E evitou o surgimento de um novo contingente: os sem-lixo. Não esqueceu de permitir aos dependentes do lixo de nele continuar colhendo a vida que lhes fugia fora do lixo, tangida por outra espécie de lixo -o lixo humano. Um processo sobre o direito de recorrer ao lixo como última possibilidade de viver é, creio, o processo de um país inteiro.

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