São Paulo, domingo, 15 de setembro de 1996
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O crente que se tornou destruidor

Desertores da igreja de Hubbard são chamados de "esquilos"

DA "DETAILS"

No passado, os Estados Unidos moldaram sua identidade nacional em torno de cultos e seitas. Seus pioneiros foram os dissidentes religiosos e inconformistas, desde os Pilgrim Fathers (os 102 puritanos ingleses que fundaram a primeira colônia nos EUA, em 1620). No clima moderno, cada vez mais paranóico e confuso, a relativa tolerância pelos cultos está diminuindo. Hoje tendemos a imaginar que todos os cultos praticam rituais obscuros, negros, de controle da mente.
Um dos opositores mais visíveis e manifestos da Cientologia nos últimos 20 anos tem sido a Rede de Consciência de Cultos (Cult Awareness Network - CAN), um grupo que faz campanhas vigorosas contra o que chama de "cultos destrutivos", que praticam o "controle da mente". A CAN fulminou os hare krishnas, a seita Moon, os Meninos de Deus, o Ramo Davidianos e inúmeras outras religiões incipientes nos Estados Unidos. Há anos eles vociferam contra a Cientologia. A raiva é recíproca, pois a igreja de Hubbard considera a CAN um grupo de ódio anti-religioso. A confusa história dos dois grupos é cheia de acusações mútuas de fraude e intimidação, assim como uma série infindável de ações judiciais.
Telefono para Priscilla Coates, a dirigente da CAN em Los Angeles, e peço para visitá-la. "Como posso saber se você é mesmo quem diz que é?", ela pergunta. "Gostaria de ver sua carteira de identidade e um exemplar da revista com o seu nome impresso." Envio-lhe um fax do que pediu.
Cinco minutos depois ela me liga, dá o endereço e avisa: "Já fui enganada antes. Fui indiciada em 22 ações pela Cientologia. Isso mexe com a gente". Hóspede dela há alguns meses em sua casa em Glendale, Dennis L. Erlich é uma celebridade nesses círculos. Compositor amador de rock, alto, forte e exaltado, ele costumava ser importante na Cientologia; em seus 14 anos na igreja, Dennis diz que chegou ao posto de líder principal da Base da Terra da Bandeira (Flag Land Base), o antigo quartel-general da Cientologia em Clearwater, Flórida. Quando se descobriam pessoas com problemas de conhecimento da "tecnologia", elas eram enviadas a ele para o que chama de "correção". Dennis Erlich não apenas distribuía "correção"; afirma que também esteve na outra ponta do que descreve como uma organização obcecada por disciplina.
Naquele tempo, os membros voluntários da equipe cujo desempenho houvesse declinado muito eram enviados à Força Projeto de Reabilitação para executar tarefas humildes e corriqueiras. Certa vez, quando a disciplina fraquejou, Erlich disse brincando que era tão especial que em poucas horas Hubbard o aceitaria nas funções normais. Como castigo, conta que foi trancado num porão, onde ficou dez dias, limpando o lugar e fazendo as refeições sozinho. (A igreja nega com veemência ter detido alguém contra sua vontade e pinta Dennis como um mentiroso incansável, que fez diversas acusações infundadas à igreja ao longo dos anos.)
Quando ele saiu, aproximadamente em 1982, dirigiu seus canhões para a antiga religião. Recentemente, descobriu que a Internet podia ser uma arma em sua campanha. Aí surgiram alegações de que a Cientologia praticava escravatura, sequestro, fraudes, influência perniciosa e encarceramento. E, pior, começou a falar sobre as técnicas secretas de OT, que conhecera intimamente. Em fevereiro do ano passado a igreja obteve uma ordem judicial para vasculhar sua casa e apreender documentos e disquetes de computador que supostamente continha material deles, tanto sacramente secreto -mais apropriado para a igreja nessa escaramuça em particular- como secularmente autorizado. As repercussões desse ataque ao que os cidadãos da Net consideram sua Utopia liberal -onde qualquer um deveria poder dizer o que quiser- continuam presentes. O rumoroso processo que se seguiu custou bastante a Dennis; é por isso que Priscilla o está hospedando por algum tempo. Ele é sarcástico a respeito do Centro de Celebridades e sua clientela: "É como se tivessem um exército de curandeiros psíquicos com os quais pudessem contar. 'Oh, estou por baixo nas duas últimas semanas. Odeio meu agente. Não consegui um só bom papel.' Eles preenchem um cheque de US$ 50 mil e toda a máquina entra em ação".
Dennis suspira. "São carneiros com sinos no pescoço. Se você conseguir levá-los pelo caminho desejado, os outros virão atrás. As celebridades nunca conversaram com alguém que ficou trancado num porão, como eu. E muitas pessoas são... torturadas de uma maneira ou de outra. É como a Disneylândia. Você faz o percurso, mas nunca vê as porcas e parafusos, o que há por trás do cenário."
Dennis é o apóstata clássico: o crente transformado em destruidor. Tudo o que um dia julgou puro, hoje considera corrupto. Curiosamente, acredita que não foi ele quem mudou, mas o culto. Diz que se tornou totalitarista, militarista, opressivo. No seu tempo, quando ele estava lá para garantir o pensamento ideológico certo, era uma força benigna.
A guerra do culto versus anticulto é dura; trata-se de acusação e contra-acusação. Cada lado acredita estar lutando ao lado do bem contra o mal. Dennis é provocador. Está empenhado numa batalha judicial para reaver seus disquetes. Vai levar a luta adiante. Diz que de qualquer forma não tem nada a perder.
Há sempre boas leituras nas mesas do saguão do Centro de Celebridades. Numa delas vejo uma pilha de exemplares de "Altos Ventos" (High Winds), a revista da Org Mar. Folheio um deles e descubro um texto intitulado "Lidando Com a Supressão na Quarta Dinâmica". A "quarta dinâmica" é a expressão de Hubbard para dizer "em escala mundial". Fala em "erradicar PSs externas" -as Pessoas Supressivas, que trabalham contra a igreja: ser "declarado" um PS é o equivalente à excomunhão. Os desertores que tentam tirar proveito de seu conhecimento da tecnologia de Hubbard são chamados de "esquilos". Num tom de militância implacável, a matéria conta como eles agiram para "calar" um ex-membro que escreveu um artigo a respeito:
"Desempregado e abandonado pela família, esse esquilo havia planejado ganhar dinheiro cacarejando suas mentiras num livro. Mas o Departamento de Assuntos Especiais conseguiu que um tribunal declarasse o livro difamatório. Ele foi levado à falência, juntando-se a dois outros que tiveram o mesmo destino no ano passado, depois que foram confrontados por membro da Org Mar..."
E assim o bem triunfará. Aleluia!
Minha visita está chegando ao fim. No domingo à tarde, depois que o grupo de jazz que tocou durante o café da manhã se foi, e o cisne esculpido em gelo do bufê derreteu, o pavilhão do Centro de Celebridades tornou-se palco de um serviço dominical. Uma coisa pequena, com a participação exclusiva de cientólogos, mas em teoria qualquer um pode observar.
Um colarinho de clérigo encobre a camisa vermelha do ministro; abaixo dele, um grande crucifixo de oito pontas. Quando o animado piano pára, o ministro recita o credo da Cientologia, o apelo de Hubbard à autodeterminação. "Nós da igreja acreditamos que todos os homens têm direitos inalienáveis a conceber, escolher, assistir e apoiar suas próprias organizações, igrejas e governos..."
A Cientologia continuará a divergir de nossa própria realidade durante anos, mas aqui, nessa cerimônia aborrecida, parece ter conquistado o suficiente para sobreviver, para ser incluída no estranho emaranhado das seitas americanas. Eu estou imune às mensagens de Ron. Vejo apenas os defeitos. Mas estas pessoas as vêem de outro modo.
O ministro está lendo um dos livros de Hubbard. "A salvação não vem com o soar de trombetas. Vem suavemente... E você não tem de ir para o céu ou para o inferno... se não quiser." A platéia, que acredita que Hubbard lhes indicou o modo de controlar suas vidas, ri alto e em uníssono. Todos se levantam, aplaudem e gritam, enquanto o coro recua e olha reverentemente para o quadro do homem de quepe de marinheiro.
"Vai! Vai! Vai!" Na segunda-feira de manhã sou despertado pelo ruído da equipe, que faz seus exercícios de início de semana no estacionamento. Eles correm de um lado para outro gritando palavras de incentivo, num obscuro revezamento que não distingo.
Antes de devolver a chave do quarto, encontro um bilhete sobre a mesa: "Prezado sr. Shaw, queria apenas lhe dizer que foi ótimo tê-lo aqui. Espero que o senhor tenha algum tempo para auditar outras pessoas -e assim fazer grandes conquistas. Desejo-lhe sorte e ficarei muito contente em servi-lo quando voltar aqui". Ela é feliz. A Cientologia deu à sua vida o objetivo que faltava. Tanto que ela deseja que eu o compartilhe. E assina: "Sinceramente, Beatrix -sua camareira", em redondas letras azuis.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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