São Paulo, segunda-feira, 16 de setembro de 1996
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Quarto escuro

JOÃO SAYAD

Preso no último quarto escuro no fundo do porão da casa de três andares. A luz só entra por pequena janela alta. Ali você pode pensar sobre liberdade.
Liberdade é saber onde estamos -onde fica o quarto, onde está o porão na planta geral da casa, como a paisagem estreita da janela ao rés do chão se compõe com a visão completa do jardim.
Depois, liberdade é querer sair -trocar a segurança daquele lugar escuro e úmido pelo ar fresco e cheio de luz do jardim. E, se não conseguir ser libertado, conviver com a frustração de estar preso naquele lugar, ainda que já tenha a consciência do espaço maior que existe lá fora.
Nem sempre vale a pena. Muitas vezes, a felicidade de se acostumar com pouca luz e a umidade é preferida à consciência dos obstáculos insuperáveis.
Para fazer boa política econômica é preciso saber onde estamos. Para sair do quarto escuro, não adianta espernear, gritar ou bater com força na porta. Nossos gritos serão ouvidos pelos vizinhos, mas, se não soubermos como seduzir o carcereiro, continuaremos presos.
Emprego, no Brasil, sempre foi coisa rara. Antes, havia os escravos. Depois, incentivamos a imigração dos nossos bisavós para acabar com a dependência dos escravos. Depois, faltou emprego de novo.
Emprego público sempre foi cobiçado. Não porque se trabalhasse pouco. Mas porque era emprego e estável em país de poucas oportunidades.
Agora, emprego se torna ainda mais difícil.
As fábricas empregam pouco, o comércio emprega pouco, as novas atividades do setor de serviço crescem devagar e informatizadas. É uma nova falta de emprego, agora moderna e internacional.
O governo não emprega mais e, quando emprega, paga pouco, não garante aposentadoria nem estabilidade, pois há muitos e muitos anos não tem dinheiro suficiente para pagar nem mesmo a folha de pagamentos que antes era sagrada.
É problema sério e pode ser analisado sob várias perspectivas.
Primeiro, olhando o mundo pela janela ao rés do chão. Como fazem os economistas novos keynesianos ou novos clássicos. Uma visão feliz -ou oportunista?- que canta os novos tempos como se fossem realmente novos. O mundo é o melhor dos mundos possíveis, e o que acabou de chegar é sempre novo e bem-vindo.
O trabalho se tornará uma coisa agradável, criativa como o trabalho de um pintor, em frente ao cavalete e à tela branca, ou o trabalho do músico, de olhos fechados, acariciando o violino como se fosse uma namorada. Não haverá necessidade de férias. Para que descansar de trabalho tão agradável?
A visão crítica é dolorosa. Reconhece o início dos novos tempos, mas declara a compaixão pelas suas vítimas. Como um desempregado de 40 anos, formação universitária, 20 anos de experiência poderá pagar o supermercado? Será que na fila do caixa poderá pedir crédito para seu bisneto? Quem criará seus filhos, netos e bisnetos?
E o desempregado analfabeto, que trabalha desde os 15 anos, poderá pedir ao dono do barraco que cobre o aluguel de seu tataraneto, que saberá ler, trabalhará como corretor de imóveis ou franqueado de uma cadeia de lanchonetes?
Para a visão crítica, a diminuição do emprego em todos os setores, ainda que possa ser o prenúncio de uma nova era, de um novo conceito de trabalho, foi gerada há uns 20 anos e mais uma vez pelo esforço do capital em aumentar a taxa de lucro e reduzir a pressão dos sindicatos e dos salários mais altos dos anos 70.
Os sindicatos se desmantelaram no mundo inteiro, a relação de emprego se tornou flexível como a contratação de um bóia-fria. O capital se libertou das fronteiras nacionais, das máquinas e dos prédios e agora pode voar para onde o incentivo fiscal for maior, o ambiente econômico mais de acordo com as crenças dos donos do dinheiro (equilíbrio nas contas públicas e poucos impostos) e o custo da mão-de-obra, menor.
Mais uma vez se inaugura nova fase alvissareira na história da humanidade e as vítimas serão as de sempre, como foram os servos libertados das glebas feudais para morar em cortiços e trabalhar ininterruptamente nas antigas fábricas inglesas, francesas e alemãs.
A visão crítica conhece o quarto escuro onde está fechada -o desemprego é problema grave e as soluções, difíceis.
Reduzir os encargos da previdência para tornar o custo da mão-de-obra menor, ainda que isto comprometa a aposentadoria, e acabar com a estabilidade da relação de emprego. Para que os brasileiros possam concorrer com trabalhadores de todo o mundo, novamente unidos, desta vez pelo mercado internacional de capitais.
A função de governo é a mais difícil. O que fazer? A escolha é difícil e sempre desfavorável ao trabalho -salário real menor ou desemprego maior.
A visão do governo não tem importância. Só não pode dizer que o problema é setorial, regional ou temporário. Afinal de contas, do governo, assim como do pai, sempre se espera compreensão e soluções simbólicas ou efetivas, não importa.

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