São Paulo, terça-feira, 17 de setembro de 1996
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De tanta coisa chocante que se escreve e se lê

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Coisa número 1: como um amigo a quem será quase inevitável perder. A distância se alarga cada vez mais, o cabelo preto reluzente esvoaça lá longe, levando nos fios a esperança fina de que se fixe algo ainda daquela pessoa que se quis.
É inútil. O olhar é de desinteresse, de impotência diante do universo incompatível em que se perde uma pessoa. As pontes dão para ruir -que eram de estrutura mal calculada.
Impossível compartilhar, digamos, a futilidade, o acúmulo de drogas, a mesquinharia de sentimentos, a escassez de pensamento e idéias do mundo a que se entrega (e em que se perde) um amigo que antes lhe pareceu tão encantadoramente afinado com você.
É uma decepção, um golpe no seu já rarefeito entusiasmo pela gente como ela é. Escreve-se isso num pedaço de papel. Alguém lê. Pode ser o fim -certo ou errado, equívoco de quem leu e se reconheceu.
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Coisa número 2: Escrevi aqui outro dia que eu, quando menina, não tinha qualquer respeito pelo meu pai. Com indignação, interpelaram-me sobre essa frase. Queriam saber o que pensa o meu pai sobre isso.
Foi uma espécie de inquisição leve, de fogueira que não queima. Nas inquisições, parte-se sempre do mesmo princípio estreito não só de que todos os pais merecem respeito como também de que nenhuma filha terá jamais o direito de afirmar (e num jornal!) que não nutria respeito pelo seu pai.
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Coisa número 3: baianos, pernambucanos e caipiras. Certos tipos brasileiros são de um provincianismo, de um bairrismo e de um complexo de inferioridade descabidos para a leveza e debilidade de nosso orgulho nacional.
Não é o provincianismo bom, o da sabedoria "dos recantos perdidos", que "conservam um senso de seriedade que passou da moda nas capitais", como disse Boris Pasternak.
Trata-se do provincianismo despeitado, típico do espírito de proprietários que se apodera dessa gente quando o assunto é a terra "deles".
Meses atrás, fiz aqui um paralelo entre a fraqueza do Jeca Tatu de Monteiro Lobato e o poder neocaipira do interior de São Paulo, admirando a mudança em tão pouco tempo. Foi o suficiente para a gente de lá, roxa de ódio, ler que eu chamei o interior de Jeca.
Escrever sobre baianos e pernambucanos é ainda pior, a não ser que se faça o épico de uns e outros. Que se trate Salvador como se fosse melhor do que Manaus ou Porto Alegre -elevando o dendê, a música, os caciques políticos e os coronéis literários da Bahia ao status de cultura nacional.
Já um jornal de Recife se deu ao trabalho de expressar em editorial o repúdio a uma matéria minha sobre a festa de São João no sertão.
Num jornalismo pseudo-acadêmico, ridículo de tão amadorístico, criticava-se a expressão da ONU "subpaís nordestino", usada por mim na matéria. Exigia-se o de sempre: a glorificação da selvagem aristocracia pernambucana, a rural e a urbana, cínica e eufemisticamente chamada de "tradição" nordestina.

E-mailmfelinto@uol.com.br

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