São Paulo, quarta-feira, 18 de setembro de 1996
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Paulo Francis é a Carmem Miranda do caos

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Escrevendo outro dia para o "Mais!", Nelson de Sá disse que o grande mestre de sua geração foi Paulo Francis. É verdade. Todos nós aprendemos com ele. Lembro-me de uma pichação no banheiro da Filosofia da USP, no começo dos anos 80, em que se dizia: "Francistas de direita, francistas de esquerda, uni-vos".
A pichação era tola, mas atesta um momento em que era possível admirar Paulo Francis tanto de uma ótica esquerdista quanto de uma ótica conservadora. Todos sabem que Paulo Francis era de esquerda "na juventude". Em 1980, o que escrevia era ambíguo o bastante para admitir adesões de trotskistas e de liberais ao mesmo tempo.
Atualmente, não há dúvidas. A coluna de Paulo Francis no "Estado" diz tudo o que o velho dr. Julinho Mesquita nunca achou conveniente dizer. Que Vicentinho merece chibatadas, e que negros, waal..., não passam de negros. Paulo Francis apoiou Collor loucamente. Pôde em seguida pôr a culpa nos alagoanos. Nos anos 60, era adversário de Roberto Campos, hoje eleva o homem à condição de estadista.
Dizer que Paulo Francis se tornou porta-voz da direita espumante seria, entretanto, dizer pouco e entender menos ainda de sua personalidade.
"Waal - O Dicionário da Corte de Paulo Francis", textos selecionados por Daniel Piza (editora Companhia das Letras), é um livro excelente. Tudo o que há de característico em Paulo Francis -o tom oracular, o inconformismo, a provocação, a inteligência- foi preservado sem que precisássemos aturar a quantidade de fascistadas, de repetições, de gratuidades, de observações gastronômicas, de ataques rotineiros e tiques de linguagem que prejudicam tanto sua coluna.
Torna-se mais difícil, com esse livro, criticar Paulo Francis. Daniel Piza atuou um pouco como Boswell, no século 18, diante de Samuel Johnson -coligindo ditos memoráveis do velho crítico-, mas acontece que esse Samuel Johnson é um Jonathan Swift, isto é, um frasista ainda mais incendiário, mais panfletário, mais possuído pelo demônio. Necessitava de um compilador, de um secretário de bom gosto e de bom senso.
Podemos então reencontrar no livro, expurgado de suas barbaridades e incorreções políticas, o velho Francis que encantava o pichador da faculdade de Filosofia nos anos 80.
Encontramos julgamentos inteligentíssimos, diagnósticos perfeitos: "A.N. Wilson acha que nunca houve tanta gente iletrada. É um erro. Há mais gente letrada hoje do que em qualquer época da humanidade. A diferença é que a grande massa iletrada faz hoje parte do mercado e é, em alguns setores, quem o define, quem o nivela por baixo".
Uma frase dessas vale pelas 50 que Francis dedica mensalmente aos restaurantes de Nova York, a "Mogadon Suplicy" ou a "Erundííína".
Mas é como se Paulo Francis não se contentasse em ser crítico de cultura, sociólogo, intelectual. Ele precisa provocar. O racismo, o insulto, a arrogância, o cafajestismo, o histrionismo, a frivolidade, a ligeireza de suas críticas a Wittgenstein, Roland Barthes, Foucault fazem parte da estratégia.
Nesse sentido, ele é "pós-moderno". Justamente ele, que dá um diagnóstico tão preciso do fenômeno do pós-modernismo: "Na televisão, tudo é igual, isto é, tudo tem o mesmo peso. Não há hierarquias. Para quem um cataclismo político na China tem o mesmo peso que um assalto em Nova York, a idéia de valor é inconcebível".
Mas é o próprio Paulo Francis quem mistura tudo, ao dedicar tantas linhas contra Foucault quanto contra Ruth Escobar, contra Lula ou sobre o último suflê que comeu no "Four Seasons".
Temos assim um intelectual tomado pela doença do antiintelectualismo. Seus textos mostram o resultado do pensamento -a opinião- sem mostrar o processo do pensamento. Daí seu caráter oracular, o tom "Meninos, eu vi".
Paulo Francis sempre fala a partir de um ponto de vista autoritário. Ele sabe mais, ele não se engana, ele "já viu". A idade avançada e o posto geográfico -Nova York- facultam-lhe essa tomada de posição.
É uma pena. Pois ele poderia dizer tudo o que diz de um modo mais sutil, mais aristocrático, menos caricatural. Sente-se vocacionado, contudo, à provocação.
Provocação que fazia sentido quando ele escrevia na Folha nos anos 80. Passou para "O Estado" e não percebeu, creio, que funciona ali como o "id" babante do leitor estadônico da terceira idade. Poderia ter usado sua coluna no "Estado" para se aquietar, isto é, se demorar numa crítica de ópera, contemplar longamente uma exposição de arte, em suma, diminuir a própria histeria.
Ocorre que ele encarou "O Estado" do mesmo modo com que encarou a Folha ou "O Pasquim": o palco para sua provocação. A provocação que ele exerce contra a esquerda, no "Estado", cai no vazio, e é ao mesmo tempo mais escandalosa do que antes, pois significa apenas adesismo.
Esse talvez seja o grande pecado de Paulo Francis, dos anos 60 até hoje. Sua atividade jornalística nunca foi herética no atacado. Ou seja, quando a esquerda era forte, ele era de esquerda, quando foi fraca, ele foi de direita.
A fórmula de Francis resume-se no seguinte: como agradar à maioria dos leitores desagradando o maior número possível de pessoas? A mistura de insulto e obviedade de suas colunas se resume a isso.
O que é um desperdício. Não vou fazer aqui a psicanálise de Francis, mas acho que entendo o que se passa.
Ele era o gordinho tímido de óculos que todos nós, no ginásio, tivemos a oportunidade de conhecer. Falo por mim mesmo, é claro. Eu também queria esmagar e humilhar os bacanões da escola. Era esmagado e humilhado. Nunca odiei tanto, nunca fui tão humilhado quanto naquela época.
Para mim, é como se Paulo Francis exercesse, hoje, a vingança pelo que sofreu. Torna-se o bagunceiro, o indômito, o contestador da classe. O "enfant terrible". Procura o lugar minoritário que o primeiro aluno sempre teve. Só que seu lugar minoritário precisa ter, agora, um poder enorme.
Ele consegue esse poder pelo virtuosismo, pela inteligência do estilo. Não contente com isso, busca um poder na adesão ideológica a quem está forte no momento. A cara-de-pau do menino que obtinha as melhores notas ganha legitimidade pelo fato de que "waal... escrevo de Nova Yohhrrrrkkh..." e sei muito mais do que vocês, cretinos ululando na taba.
Assim como o poder no ginásio se estabelecia em torno dos mais fortes, dos que jogavam melhor futebol, contra os baixos, os gordos, os intelectuaizinhos de óculos, Paulo Francis usa seu poder de nova-iorquino e de brasileiro ressentido para atacar aqueles que são, na verdade, seus inimigos imaginários.
Sua agressividade é puro ressentimento: contra a esquerda, contra as mulheres, contra os franceses. Aprendeu que nos Estados Unidos se diz a verdade. De um modo que nós, brasileiros, temos medo de fazer. Tornou-se o macho desse "dizer a verdade". Provavelmente sofre por não ser colunista num jornal americano.
Sua coragem puritana se mescla com o cafajestismo brasileiro, o que o faz ao mesmo tempo crítico agudo da hipocrisia brasileira e da hipocrisia americana. Elite, no Brasil, é uma mescla de refinamento e grosseria. Paulo Francis é isso também.
Eis o que mais me incomoda nele. Paulo Francis não precisava, nem merecia, ser tão caricato quanto é hoje. A máscara que fala na Globo e baba no "Estado" é a de um intelectual vigoroso, inteligentíssimo, que preferiu ser uma espécie de Carmem Miranda do caos, um humorista de mau humor, um Edmund Wilson com bigodes de Groucho Marx.
Mas ele nos ensinou a dizer a verdade. Ninguém fez o que ele fez aos jornalistas de minha geração. Ainda temos muitas coisas a aprender com sua atitude; embora seja maior, talvez, o número de coisas que não devemos aprender.

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