São Paulo, quinta-feira, 19 de setembro de 1996
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Ajuste fiscal virou tarefa de Sísifo

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Há um clamor generalizado pelo ajuste das contas públicas brasileiras, tanto aqui como no exterior.
A preocupação com o tema é compreensível. Não obstante, esse discurso dominante oculta, ou deixa em segundo plano, uma dimensão fundamental do quadro macroeconômico brasileiro.
Refiro-me ao fato de que o déficit público e o crescimento da dívida interna são, em grande medida, um subproduto da tendência ao desequilíbrio externo produzida pelo Plano Real, em especial pela política cambial.
Geisel, então ex-presidente, me disse uma vez: "Vocês, economistas, fazem um tremendo mistério e abusam do economês. Mas não há questão econômica relevante que não possa ser entendida por uma pessoa inteligente".
É verdade. Não é difícil compreender as principais questões. Qualquer um entende (ou pode entender, se receber uma explicação decente) como a taxa de câmbio afeta o comércio exterior, por exemplo, ou como os gastos públicos e a taxa de juro influenciam o nível de atividade econômica etc.
O grande problema é formar uma compreensão integrada das diversas questões e estabelecer uma visão coerente de conjunto. Por mais interessado e inteligente que seja, o leigo tem, normalmente, certa dificuldade de perceber como se interligam os diferentes aspectos do problema macroeconômico.
Os economistas, especialmente quando estão trabalhando para o governo, pouco contribuem para proporcionar essa visão de conjunto.
Vejam, por exemplo, o discurso atual dos economistas oficiais. Reconhecem (e nem poderiam deixar de reconhecer) que o déficit público e o custo do crédito são altos demais.
Não reconhecem (nem poderiam reconhecer de público) que o câmbio está sobrevalorizado. Sustentam que a política cambial não deve mudar e que a queda das taxas de juro e a consolidação do Real dependem da redução do déficit público.
Alguns economistas não-governamentais reconhecem que o câmbio está fora do lugar, mas condicionam a correção cambial a uma prévia e demorada consolidação das contas públicas, argumentando que sem isso a desvalorização traria a inflação de volta.
Bem. O problema central desses diagnósticos está em não considerar, em toda a sua extensão, as ligações entre a questão fiscal, a taxa de juro e a taxa de câmbio.
São muitos os canais de comunicação entre o desequilíbrio externo e o desequilíbrio fiscal. Vamos fazer uma rápida recapitulação do que vem acontecendo em 1995-96. Sintam o drama.
Preocupado em reduzir o desequilíbrio das contas externas, sem desvalorizar a taxa de câmbio, o governo manteve a economia em recessão ou crescendo a taxas modestas.
Ora, uma redução da taxa de crescimento do PIB é boa para a balança comercial, mas ruim para as contas públicas. Por um lado, diminui as importações e gera excedentes exportáveis. Por outro, deprime as receitas públicas e aumenta certos tipos de gasto (despesas com o seguro-desemprego, por exemplo).
Acresce que a contenção da demanda interna tem sido produzida, essencialmente, por restrições ao crédito em reais e juros elevados.
Mais uma vez, isso é bom para as contas externas, porque facilita o refinanciamento dos passivos de curto prazo e estimula o ingresso de capital necessário para cobrir o desequilíbrio externo produzido pelo câmbio valorizado. Mas é ruim para as contas públicas, pois onera a dívida interna da União, dos Estados e municípios e das empresas estatais.
Além disso, um período prolongado de juros altos, com a economia estagnada ou crescendo pouco, produz tensões financeiras que acabam, de uma forma ou de outra, desaguando sobre as contas da União.
Setores atingidos pela política macroeconômica e com capacidade de pressão política -bancos públicos e privados, Estados, prefeituras, agricultura, por exemplo- acabam obtendo algum tipo de alívio tributário ou socorro financeiro, sempre à custa das finanças federais.
Para tentar compensar os problemas gerados pela valorização cambial, o governo recorre, ademais, a incentivos tributários, como fez recentemente ao conseguir a aprovação da isenção do ICMS sobre exportações de produtos primários e semi-elaborados, com custo expressivo para as finanças públicas.
Não se deve esquecer, finalmente, que a vulnerabilidade financeira externa produzida pela política cambial contribui para induzir o Banco Central a manter um nível excepcionalmente alto de reservas internacionais.
O custo fiscal de carregá-las é elevado, uma vez que a remuneração que se pode obter com a sua aplicação no exterior é muito inferior ao que o governo paga sobre os títulos usados para neutralizar o impacto monetário interno das operações cambiais. Mais uma vez, a administração das contas externas cobra um preço em termos de desajuste das contas públicas.
Nesse contexto, o famoso ajuste fiscal, proclamado "urbi et orbi" como a grande tarefa pendente, corre o risco de transformar-se numa tarefa de Sísifo.
À primeira vista, o problema parece insolúvel. É arriscado, dizem alguns, mexer no câmbio sem fazer o ajuste fiscal. Por outro lado, o desajuste cambial conspira contra o ajuste fiscal.
O que fazer? Volto ao tema na semana que vem.

E-mail±pnbjr@ibm.net

Hoje, excepcionalmente, deixamos de pulicar a coluna de Aloysio Biondi

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