São Paulo, quinta-feira, 19 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Democracia é ferramenta para a construção da cidadania

MARIO SERGIO CORTELLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O poeta e dramaturgo francês Edmond Rostand, mais conhecido pelo seu Cyrano de Bergerac (1897), disse: "Enquanto houver ditaduras, não terei coragem para criticar uma democracia".
Algumas décadas antes dele, em um discurso de 1856, o futuro presidente dos Estados Unidos da América, Abraham Lincoln, fez um belo trocadilho em inglês: "The ballot is stronger than the bullet" (a cédula é mais forte que a bala), poucos anos antes de liderar a União em uma guerra civil. Ilusão política, falta de senso crítico ou demagogia pragmática?
A democracia, essa invenção grega do século V a.C., nasceu, para os padrões de hoje, pouco democrática: cidadão era somente o grego, livre, homem e maior de 35 anos de idade. Teve vida breve na antiguidade e só renasceu, de fato, no século 18. Até nossos dias, no entanto, ainda não se disseminou por todo o planeta.
Para os que se espantam com os mecanismos de exclusão de cidadania no berço grego clássico, basta lembrar que, mesmo nos países mais avançados, as mulheres só tiveram acesso ao voto neste século (em alguns cantões da Suíça ainda não votam) e, no Brasil, o sufrágio só passou realmente a ser universal em 1988 (quase um século após a proclamação da República!); ademais, apenas duas nações de porte (Brasil e Nicarágua) permitem a inscrição de eleitores a partir dos 16 anos.
Esse regime político tão caro a muitos de nós não teve -e nem tem- o caráter de unanimidade; não são poucos os que o vêem como um avatar da mediocridade ou, pior, como um instrumento de degradação dos ideais mais nobres de uma elite esclarecida.
É o caso, por exemplo, do mestre alemão do drama e da poesia Goethe ao afirmar que "nada é mais opressivo do que a maioria: é que ela é composta de um pequeno número de chefetes enérgicos, de patifes que se acomodam, de fracos que se assimilam e da massa que lá vai nem bem nem mal, sem saber de modo algum aquilo que quer".
Talvez os 50 anos durante os quais se dedicou a escrever sua obra-prima, "Fausto", tenham afastado Goethe dos eflúvios de liberdade que emanavam da França ou, entenderia ele, não vendeu sua alma ao mefistófeles popular.
A preocupação com as decisões imperativas da maioria encontraram eco na própria França, fonte moderna do ideal democrático: o romancista católico francês Paul Bourget nos legou no início deste século a idéia de que "o sufrágio universal é a mais monstruosa e a mais iníqua das tiranias -porque a força do número é a mais brutal das forças, não tendo mesmo a seu favor a audácia e o talento".
Bourget não estava sozinho; na mesma época, no outro lado do Atlântico, o fundador da indústria automobilística Henry Ford dizia: "A democracia de que sou partidário é aquela que dá a todos as mesmas probabilidades de êxito, segundo a sua capacidade. Aquela que repudio é a que pretende confiar ao número aquilo que pertence ao mérito". É o temor do "perigo das massas ignaras"? Ou, como tem sido usual no pensamento das elites brasileiras, "democracia é um bem, dependendo das circunstâncias"?
Ora, a democracia não é um fim em si; é uma poderosa e indispensável ferramenta para a construção contínua da cidadania, da justiça social e da liberdade compartilhada. É a garantia do princípio da igualdade irrestrita entre todos -até para quem dela discorda.
Isso tudo torna cada vez mais verdadeira a frase atribuída a Winston Churchill: "a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que tem sido tentadas de tempos em tempos".

Texto Anterior: Primeiro capítulo de "Xica da Silva" capricha na caracterização de época
Próximo Texto: Convites estão disponíveis
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.