São Paulo, sexta-feira, 20 de setembro de 1996
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O desejo vertiginoso pela carne

WERONIKA ZARACHOWICZ
DA COORDENAÇÃO DO "WORLD MEDIA"

O professor Claude Fischler é diretor de pesquisas do Instituto Francês de Pesquisas Científicas (CNRS).
Depois de fazer carreira em jornalismo, tornou-se membro do "grupo de diagnóstico sociológico" da prestigiosa Escola Francesa de Estudos Superiores em Ciências Sociais.
No final dos anos 70, Fischler começou a estudar a alimentação e as representações do corpo em diferentes culturas, tendo publicado o livro "Man: the Omnivore", em 1990. Em entrevista, ele fala sobre as propriedades, culturais e nutritivas, da carne.
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Pergunta - Quase todas as culturas proíbem o consumo de determinados produtos à base de carne, de maneira permanente ou em épocas específicas. Por que a imagem que temos da carne é negativa?
Resposta - A carne é o alimento mais avidamente procurado, mas também aquele que está sujeito às proibições mais rigorosas. O exemplo da carne de porco sempre vem à mente pelo fato de ser proibida nas culturas judaica e muçulmana. Mas há tantos tabus em relação aos ovos e à carne de aves quanto aos outros tipos de carne. Já lentilhas, espinafre e alface nunca foram proibidos.
Mesmo hoje, nossa relação com a carne está estreitamente ligada à religião. Nos países de tradição protestante, carne e açúcar são frequentemente vistos como sendo de algum modo relacionados ao mal. Isso talvez explique porque entre 3% e 6% dos ingleses são vegetarianos.
Mas, deixando os tabus religiosos e culturais de lado, a carne sempre foi o mais valorizado e procurado dos alimentos.
Isso acontecia, sem dúvida, devido às suas excelentes qualidades nutricionais. A carne é rica em proteínas e gorduras, o que significa que também é rica em calorias. E, embora a gordura em si não tenha sabor, parece que os seres humanos são "lipófilos", ou seja, sentem o desejo instintivo de consumir alimentos gordurosos.
Pergunta - Quer dizer que não podemos viver sem carne?
Resposta - O homem só se tornou o que é hoje quando começou a comer carne. A caça, visando encontrar carne, tem sido parte essencial das atividades humanas desde tempos imemoriais. Não nos esqueçamos de que o homem tem sido caçador, ou caçador-coletor, por 99,9% de sua existência. Foi a caça que levou à evolução do cérebro e das mãos.
O vocabulário político de hoje é derivado do vocabulário usado durante os banquetes na antiguidade, quando se fazia o sacrifício de animais. O ato de trinchar o animal, por exemplo, era conhecido como "participatio", palavra ela própria derivada de "parti-ceps", ou seja, aquele que toma sua parte. "Princeps" (príncipe) denotava aquele que era servido primeiro e "privatus" (o privado, em oposição ao público) descrevia a pessoa que não tomava parte no banquete.
Os historiadores apontam que o consumo de carne é prova de que se toma parte na vida pública, enquanto o vegetarianismo pode ser interpretado como uma recusa em aceitar as leis da sociedade.
Os pitagoristas, por exemplo, seguidores de uma seita vegetariana da Grécia, faziam de sua recusa em comer carne um ato de rebelião política.
Pergunta - Como o senhor explica a queda no consumo de carne verificada nos países ocidentais nos últimos anos?
Resposta - O consumo de carne sempre serviu como indicativo da prosperidade de uma sociedade. Mas, pela primeira vez na história, o consumo de carne nas sociedades ocidentais está caindo. Desde o início dos anos 80 o consumo de carne vermelha vem caindo.
Hoje em dia o que as pessoas querem é uma dieta "balanceada". Elas não dizem que não se deve comer carne, mas que comer carne todos os dias faz mal à saúde. As pessoas querem uma alimentação variada e querem reduzir o consumo de certos elementos, tais como açúcar e gorduras.
Quando a estrutura sócio-econômica de uma sociedade muda, valores morais também evoluem. Essa evolução ocorre em dois níveis: sócio-econômico e sexual. Na França da década de 50, 25% da população economicamente ativa trabalhava no setor agrícola.
Hoje essa porcentagem é de menos de 5%. Na sociedade moderna, as pessoas gastam menos energia.
Pergunta - O aumento do número de mulheres que trabalham exerceu algum efeito sobre a alimentação?
Resposta - Claro. A independência financeira das mulheres aumentou e seu poder de compra também, mas a divisão dos trabalhos domésticos continua mais ou menos a mesma. As mulheres têm menos tempo para cuidar da casa. Esse fato exerce consequências inegáveis sobre nossos hábitos.
A carne sempre foi vista como um alimento de homens. A idéia de que "você é o que você come" tem raízes muito profundas. A idéia que se tem é que se você come carne vermelha será saudável. O fato é que as mulheres, que têm grande deficiência de ferro, precisam de carne mais do que homens.
Pergunta - A carne vendida vem pronta dentro de embalagens fechadas. Por que as origens animais da carne estão ficando menos evidentes?
Resposta - Somos todos animais, criaturas de carne e osso. Por essa razão, comer carne constitui uma transgressão, ou, como disse Claude Lévi-Strauss, um ato incestuoso.
Hoje em dia, temos mais dificuldade em aceitar a presença de sangue e carcaças de animais, realidades que antes faziam parte do dia-a-dia.
Nosso modo de enxergar a carne encerra uma ambivalência. Onde fica a linha divisória entre humanos e animais?
O problema se intensifica quando animais assumem identidade própria. A melhor maneira de proteger um animal é lhe dar um nome. Quando um animal tem uma identidade, pode-se tornar uma projeção antropomórfica. Mas o que mudou foi nossa visão da linha divisória entre humanos e animais. Basta pensar que a palavra "animal" vem de "anima", que significa alma.
Pergunta - Por que o modo de enxergar a carne animal possui fortes conotações sexuais?
Resposta - Devido à continuidade entre carne animal e carne humana. A carne pode despertar apetite ou excitação, mas continua sendo carne.
Também existe a idéia de que um dos sexos é predador. E o caçador, nesse caso, é sempre o macho. Aqui, também, a língua mostra o quão profundamente essa idéia está enraizada em nosso modo de pensar. As mulheres podem ser vistas como "gostosas", como algo que dá vontade de se "comer".
Mesmo nos casos em que o canibalismo foi praticado como forma de sobrevivência, como no caso da queda de um avião uruguaio nos Andes, em 1972, esse tipo de regra foi adotada espontaneamente.
As pessoas evitavam comer os corpos de membros de suas famílias. E, o que é mais importante, nenhum cadáver feminino foi comido. Imagino que eles quisessem evitar somar uma culpa à outra, especialmente se as vítimas mulheres fossem "gostosas". Isso teria introduzido um elemento sexual, impelindo o desejo sexual até o limite. Foi o caso de um japonês que amava sua namorada a tal ponto que a comeu.

Tradução de Clara Allain

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