São Paulo, sexta-feira, 20 de setembro de 1996
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Tempo de metáforas: a grande metáfora do circo

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Ninguém soube como tudo começou. De repente, não se falava em outra coisa: iam comprar um elefante. Não fora o primeiro caso. De vez em quando, sem que ninguém soubesse como ou por quê, diziam que o boticário iria à África caçar leões, ou que a mulher do delegado fugiria com o sacristão.
O tempo passava, todo mundo esquecia, mas logo o boticário começava a contar como caçara os leões da Númia e o sacristão garantia que não havia melhor fêmea na paróquia do que a mulher do delegado. Todos acreditavam em tudo, principalmente quando nada acontecia.
Eis que a notícia começou de mansinho, como as grandes, as inapeláveis notícias: o dono do circo decidira comprar um elefante que estaria à venda na Patagônia.
Até então, a maior atração do circo era o fato de ainda haver um circo. Bem verdade que havia um leão e um chinês que fazia mágicas. O chinês era apresentado como autêntico, dada a falsidade de todos os chineses que anteriormente tentaram fazer mágicas no circo e fora dele.
Quanto ao leão, esse sim era a atração maior e a mais complicada. Os mais velhos garantiam que o leão não era de nada, nem sequer era leão, embora tivesse rabo, juba, cheiro e urro de leão. Tampouco, como naquela toada que fez sucesso nos anos 40, gravada pelos Anjos do Inferno, seria a mulher do leão: era apenas uma gentil mistura de várias raças de cachorro, beneficiadas pelo toque genético e final de um macaco que pegou uma cadela de jeito.
O produto que nasceu dessa mixórdia foi tão espantoso que o único veterinário da região, chamado à praça pública para verificar o produto, insinuou que podia se tratar de um leão bastardo. Como havia muito bastardo na cidade, um a mais não fazia diferença.
Tal como Confúcio, que nasceu com 98 anos, o leão já nascera velho, desdentado e fanho. Mesmo assim, começou uma carreira de sucesso no circo. Na verdade, sua exibição era pífia, limitava-se a dar um giro sonolento, às vezes trôpego, pelo chão de serragem do picadeiro. E pronto se recolhia, combalido pelo esforço e deprimido pelas vaias que levava.
Mas, enquanto a cidade dormia, o leão vivia sua "finest hour". Seu rugido varava a noite com incrível ferocidade. Sendo fanho como um pato rouco, como explicar tal e tamanho rugido?
Diziam que o dono do circo comprara um teipe de ruídos especiais, inclusive ruído de leão com fome. Amplificado pela potente aparelhagem de som, o leão levava o pavor às noites da cidade, até o dia em que, estando embriagado, o dono do circo colocou no amplificador uma faixa errada do teipe.
Em vez do formidável rugido do leão, ouviu-se uma velha locomotiva subindo a serra e, a seguir, na faixa seguinte, o inesquecível temporal que destruiu uma aldeia da Baviera, em 1953, ruído que terminava apoteoticamente com trechos da Sinfonia Pastoral, de Beethoven.
Tudo poderia parecer meio confuso, mas a cidade ia em frente, até que surgiu a notícia de que um elefante estava à venda e que o circo iria comprar o elefante.
Os chefes de reportagem dos principais órgãos de comunicação espicaçavam seus rapazes e todos os dias surgiam revelações assombrosas não apenas da compra em si, mas de como seria o elefante.
Garantiam que era um espécime novo, saudável, capaz de dançar tangos, sambas e chorinhos, só se recusando a dançar lambada. Em seus melhores momentos, o elefante fazia imitações de Madonna e Dercy Gonçalves. E já se apresentara no Carnegie Hall numa antológica paródia de Liza Minelli cantando "Money, Money, Money". Contudo, o seu forte era mesmo ser elefante.
O tempo passava e o elefante não chegava. Até que, por natural cansaço, todos começaram a acreditar que o elefante já fora comprado, já se apresentara no circo e fizera muito sucesso. Os mais antigos chegavam a afirmar que o elefante era capaz de lutar capoeira com o velho leão -este, sim, continuava resistindo às vaias, às pesquisas do ibope e ao jornalismo investigativo.
Bem verdade que o leão ficou realmente enfurecido quando o circo contratou um corcunda para fazer o número de acrobacia no arame. O leão não podia ver o corcunda e vice-versa: o corcunda não podia ver o leão.
Os dois se estranhavam por motivos que nem mesmo o vigário local conseguiu explicar. O confronto leão-corcunda fez a platéia esquecer a compra do elefante, até que, sem aviso prévio, um guri entrou gritando pela cidade: "Um elefante! Um elefante de verdade!"
A multidão encheu as praças e ruas à espera do elefante, mas o que apareceu foi um desbotado trio-elétrico baiano que havia se perdido na estrada. Ninguém sabia ao certo como era um elefante e muito menos o que e como era um trio-elétrico. Todos pensaram que o dono do circo, afinal, tinha conseguido comprar um elefante, só que um pouco exagerado e colorido demais.
A noite de estréia foi tão memorável que, numa bobeada da produção, o leão conseguiu comer o corcunda. E, nessa mesma noite, esbodegada de emoções, a cidade nem percebeu que o sacristão fugira com a mulher do delegado.

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