São Paulo, sábado, 21 de setembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Mitterrand ganhou a guerra das Malvinas

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Uma das frases mais tristes que a história guardou de um grande homem foi a de Simón Bolívar pouco antes de morrer, em 1830, ao constatar que nada da sua obra de libertador parecia resistir ao descaso e à indiferença dos povos que o futuro chamaria latino-americanos: "Estive arando o mar", disse Bolívar.
Esse dito poético e patético me veio à lembrança outro dia enquanto eu lia, espantado, uma reportagem-denúncia que contou a verdadeira traição de que foi vítima a Argentina em 1982, quando se travava a guerra das ilhas Malvinas, ou Falklands, como as chama a Inglaterra, até hoje proprietária do arquipélago.
Relembrei o dito de Bolívar porque a grande estrela daquela guerra que a Argentina perdeu foi o míssil francês Exocet, que se propelia a si mesmo, que apenas aflorava o mar até se chocar contra o alvo e explodir.
O Exocet deve parecer, uma vez disparado e a caminho do alvo, um certo tipo de arado, maligno e destruidor. O primeiro dos Exocets lançados pelos argentinos contra os navios ingleses que cercavam as Malvinas acabou com o destróier "Sheffield".
Os ingleses ficaram desconcertados. Descobriram que os argentinos não só haviam comprado da França os mísseis como também os aviões Super Étandard, que os transportavam. Descobriram mais. Não só os argentinos dispunham de um pequeno estoque de Exocets, como o Peru os encomendara também à França, sabe-se lá para que guerra.
Ora, dado o êxito, logo comprovado, do Exocet contra o "Sheffield", a Argentina, caso precisasse aumentar seu estoque, poderia, com boa diplomacia e boa vizinhança, adquirir do Peru mísseis que a França já tivesse mandado para Lima.
O êxito da nova arma era tão categórico, sua novidade, tão grande, que se podia prever, como chegaram a prever e temer os ingleses, que a Argentina ia reconquistar as ilhas Malvinas, cuja "propriedade" lhe vinha dos tempos da famosa distribuição do mundo, pelo papa, entre lusos e hispanos, em Tordesilhas.
Aconteceu, então, o inesperado: os franceses, por decisão do presidente François Mitterrand, resolveram ajudar os ingleses. Resolveram, por outras palavras, contar "tudo" aos ingleses sobre o Exocet, sobre os meios e modos de transportá-lo e dispará-lo e, portanto, de como se defender dele.
O ministro do Exterior, Cheysson, alinhou seus argumentos contra a decisão de Mitterrand, argumentos diplomáticos, de neutralidade. Mais ainda fez o conselheiro presidencial Régis Debray, que pedia não apenas neutralidade, no caso, mas sobretudo simpatia pela causa argentina.
Mas Mitterrand não deu ouvidos a ninguém que se manifestasse contra sua decisão européia, inteiramente favorável a Londres. Até os ingleses ficaram, de início, atônitos. Era como se França e Inglaterra fossem aliados desde pequenininhos. Como se nunca tivesse havido a Guerra dos Cem Anos ou as lutas napoleônicas. Como se Joana d'Arc tivesse sido enterrada na Abadia de Westminster.
E foi assim que a Inglaterra ganhou a guerra das ilhas, que ficaram ainda mais Falklands que Malvinas.
Tudo isso que acabo de resumir foi um legítimo furo da revista "Time", do dia 9 de setembro. Imaginei, ao ler a reportagem (ilustrada por foto da então primeira-ministra Margaret Thatcher em Paris, agradecendo pessoalmente a Mitterrand a extraordinária e gratuita "gentillesse") que haveria uma onda de protestos em Buenos Aires, com críticas amargas à inexplicável atitude adotada pela França.
Bem que procurei, em minha banca de jornais, comentários de ofendida surpresa ou vibrante reação em jornais como "La Nación" ou "Clarín", ou alguma espécie de interpretação ou explicação em, digamos, "Le Monde Diplomatique". Mas os jornais de Buenos Aires só traziam notícias do "apagón" e dos esforços do presidente Menem para acalmar os argentinos, inquietos e desempregados.
Imagino que posso ter perdido algum artigo ou notícia a respeito, mas, a bem da verdade, só num texto sobre o "apagón" encontrei uma referência, casual, às Malvinas.
Esclarecia o texto em questão que a idéia de apagar luzes como forma de crítica começara com os chilenos, ao tempo do governo Pinochet. Havia o panelaço e havia o "apagón". No entanto, acrescentava o texto, em Buenos Aires, "na época da Guerra das Malvinas, apagavam-se as luzes por uma questão de segurança, temendo-se as investidas de aviões ingleses".
Sem entrar no mérito daquela desnecessária guerra, provocada por prepotentes militares argentinos, tento, mas não consigo, interpretar a atual indiferença dos argentinos diante do furo de "Time".
Em comparação com os demais países da América Latina, a Argentina é não só um dos mais adiantados e civilizados em qualquer terreno, como é, provavelmente, o mais cioso e orgulhoso de suas realizações. Isso não quer dizer que esperaríamos da Argentina, agora, que fosse romper relações com a França devido a uma espécie de perfídia cometida há 14 anos por um presidente francês já hoje falecido. Mas não seria de esperar, por parte da mídia argentina, um barulho, um "alumbrón", como dizem eles para estabelecer um antônimo de "apagón"?
Não devíamos esperar pelo menos um tango? Pelo visto, não. Parece que não é só o Brasil que esquece rápido o próprio passado. A América Latina inteira é assim. O que passou não nos traz experiência e sim tédio. Só acreditamos no futuro, que a Deus pertence, como dizemos no Brasil.
E já que começamos falando em Bolívar, pego aqui sua biografia em português, "O Libertador" (Rocco), de Moacir Werneck de Castro, para citar, nas palavras do próprio Bolívar, a opinião que ele formava, ao morrer, sobre países que ele libertara da Espanha e criara e que agora se voltavam contra ele feito um Frankenstein.
(É interessante notar que o "Frankenstein" propriamente dito, o romance de Mary Shelley, é de 1818, ou seja, dos tempos em que Bolívar libertava a Venezuela e San Martín, a Argentina.)
Bolívar, antes de morrer, escreveu: "A América é ingovernável. Os que serviram a revolução araram o mar. A única coisa que se pode fazer na América é emigrar".

Texto Anterior: MP vai notificar Carlos Manga
Próximo Texto: Congresso discutiu concessões de rádio e censura a programas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.