São Paulo, segunda-feira, 23 de setembro de 1996
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A arte é portadora da verdade permanente

LORENZO MAMMI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nas décadas de 60 e 70, a arte viveu celebrando a própria morte. Dissolvendo as distinções entre arte e vida, renunciando a seu corpo sensível, buscando o limite do impronunciável ou do invisível, toda obra propunha-se, virtualmente, a ser a última, aquela que declarava xeque-mate ao sistema da arte.
A geração de 80 pareceu reagir contra isso, reivindicando o direito a um jogo livre e exuberante com um repertório herdado. Recuperava assim um amplo território de imagens, mas essas imagens já não remetiam a nada além da própria história da arte. Irônica por excelência, produzia obras que falavam de outras obras, metáforas de metáforas.
Nada disso parece se aplicar aos artistas mais recentes: a maioria deles volta a buscar os limites da arte, como vinte anos atrás, sem porém o impulso iconoclasta e utópico que caracterizou aquela época; por outro lado, esses autores mantêm um distanciamento entre irônico e melancólico, uma falta de comprometimento com um estilo ou uma técnica determinados que remete aos artistas dos anos 80, sem que isso, no entanto, se traduza em exuberância, na exaltação, ainda que momentânea, de um "tudo é possível".
Afinal, o que essa geração quer? Talvez possamos resolver a questão a partir de uma outra, aparentemente menos ambiciosa: para quem essa geração está falando?
Por volta de 1980 -nos Estados Unidos, na Alemanha, na Itália-, os artistas se tornaram, por um breve período, fenômenos de mídia; o mesmo aconteceu aqui, em escala menor, com a Casa 7 e a Geração 80.
Ainda que de curta duração, essa atenção era sinal de uma mudança mais profunda e duradoura. Indicava que a relação íntima entre produtor e fruidor da obra, que caracterizou o mundo das artes plásticas desde a Renascença até tempos muito recentes, estava se dissolvendo.
O público da arte deixava de ter rosto: tornava-se uma multidão anônima, como o público do cinema, da literatura, do disco. O fulcro das atenções transferiu-se então dos ateliês às grandes exposições internacionais, estruturas imponentes que antes eram apenas o ponto final de um processo e que agora desfrutam do privilégio de ser as únicas a conseguir o interesse de massa já indispensável.
No entanto, as coisas não são tão simples: as obras de arte sofrem de uma incapacidade congênita em se adequar aos novos tempos. Além de exigir uma presença não reproduzível, elas são máquinas complexas, necessariamente ambíguas, que se expressam com lentidão exasperante.
Frente a um sistema de informação que exige efeitos imediatos, mensagens sintéticas e facilidade de circulação, tornam-se obscuras, tortuosas, irritantes. Em compensação, uma vez postos em movimento, continuam produzindo novos significados por séculos, talvez ao infinito -uma qualidade com que o mundo dos mídia não sabe muito bem como lidar.
Frente a esse impasse, várias soluções são esboçadas. A mais poderosa, mas também mais rudimentar, é a de conferir à arte conteúdos elaborados fora dela. Minorias culturais, políticas e sexuais reivindicam um acesso à arte como a um salão nobre da comunicação.
Neste caso, a arte já não é vista como um fim ou como um meio, mas como um sinal de status. Regride à função pré-renascentista de carregar questões, sem ser, ela mesma, uma questão.
Por outro lado, há um outro tipo de reação, que surge de dentro do velho mundo da arte, e que transforma as fraquezas em pontos de força, ainda que precários. Hoje, a arte já não ocupa um campo próprio. Tampouco veicula conteúdos universais, e nem sequer abrangentes: da universalidade se encarrega um sistema de mídia que já alcançou dimensões mundiais.
Mas a universalidade dos mídia é falha, porque não é baseada numa persistência de valores, e sim na possibilidade de substituí-los ao infinito. Trabalhando à margem, a arte garante a essa rede globalizada de informação e nivelamento a uma verdade menos descartável.
Mas a verdade da arte, justamente por sugerir valores estáveis, torna-se um obstáculo que emperra a renovação contínua. Gera-se assim uma situação paradoxal: por um lado, a arte desempenha um papel insubstituível no sistema global de comunicação, sendo portadora de uma verdade permanente, ainda que indeterminada -algo que o sistema, gerador incansável de verdades claras mas temporárias, não saberia produzir por si mesmo.
Por outro lado, essa verdade desmente o sistema e, se fosse levada a sério, o destruiria -se a verdade é algo tão obscuro e lento, as informações que trocamos todo dia devem ser outra coisa.
A permanência de valores na arte assume assim a figura psicológica do bloqueio que esconde um trauma. Tenho a impressão de que o mundo da arte esteja recortando para si, a partir disso, um espaço de sobrevida. Continua existindo enquanto estorvo necessário.
Exemplificando: muitas das obras presentes na exposição "Antarctica Artes com a Folha" buscam condições de viabilidade difícil. Nem sempre essa dificuldade é dada por obscuridade ou distância. Às vezes, o que impede de enxergar é um excesso de proximidade, uma claridade demasiado intensa ou uniforme.
A perda de unidade do mundo da arte, sua disseminação num campo cultural mais vasto e indeterminado, leva à laceração, deformação ou fragmentação do corpo da obra, amiúde da imagem do próprio corpo do artista. A remissão a si mesmo e ao próprio corpo, aliás, é uma constante: como se artista procurasse um espaço absolutamente íntimo, impossível de ser transformado em informação objetiva.
No entanto, mesmo quando trabalha com registros e memórias pessoais, o artista não parece com isso buscar a reconstituição de uma história, mas apenas indicar que sua própria história, quando transformada em arte, torna-se estranha e quase monstruosa.
Algo como um cheiro de morte emana de muitas dessas obras: esqueletos, múmias, bonecos, literalmente; ou, metaforicamente, perda de relação entre a matéria ou o suporte da obra e o gesto do artista, como se o corpo já não reagisse e o gesto não tivesse mais força.
Espécimes de um mundo da arte que já desapareceu, e que todavia não pode ser enterrado, as obras sentam assim, lúgubres, na mesa da comunicação global, como tantas sombras de Banquo.
E ainda, retomando a imagem do bloqueio: muitos trabalhos esbarram de propósito numa trava, buscam o movimento interrompido. A oclusão do fluxo regular das sensações sempre foi uma passagem necessária para alcançar o sentimento do sublime.
Mas aqui não há sublimação possível: a dificuldade não abre o caminho para um nível superior. Apenas aponta para uma falha, talvez uma culpa. Ameaça nos confessar algo inconfessável, e não nos diz nada. Convida-nos ao voyerismo, e se furta no último instante.
Segundo um mito clássico, Píramo e Tisbe eram dois vizinhos que se apaixonaram conversando e se entreolhando através de uma fresta na parede comum de suas casas. Quando finalmente marcaram um encontro, foram vítimas de uma cadeia de equívocos que os levou ao suicídio, antes mesmo de se virem. Condenada a uma separação semelhante, a arte atual conversa com seu público através das pequenas interrupções que ela própria consegue escavar no fluxo constante de informações. Não vê quem a olha, nem tampouco pode mostrar-se plenamente. No entanto, se a parede caísse, provavelmente já não seria capaz de se nortear sozinha.
A arte precisa da indústria cultural, embora a negue a cada gesto; a indústria cultural precisa da arte, como de um sustentáculo subterrâneo que todavia se esforça em encobrir, preenchendo cada buraco da superfície. Dessa negação recíproca desprende-se algo como a sombra de um valor, o ectoplasma de uma verdade.

O crítico Lorenzo Mammi é um dos curadores do projeto "Antarctica Artes com a Folha"

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