São Paulo, segunda-feira, 23 de setembro de 1996
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Václav Havel, uma homenagem à distância

FERNANDO GABEIRA

Václav Havel passa pelo Brasil. Fotos, declarações conjuntas, será que a opinião pública brasileira se deu conta da singularidade dessa visita?
Da minha parte, posso apresentar apenas o Václav Havel que vive na minha estante há muitos anos. Mais do que isso, posso apresentar as marcas no velho exemplar do livro "Interrogatório à Distância", uma longa entrevista concedida por Havel a Karel Hvizdala.
Como se sabe, passou muito tempo na cadeia, e o projeto do livro, em 85, sofreu vários contratempos até que o texto final, transcrito de furtivas gravações, pudesse ser impresso.
Para se ter uma idéia da trajetória de Havel, basta lembrar que, em 1989, ele ainda chegou a ser preso pelo crime de comemorar o vigésimo aniversário da morte de um herói nacional tcheco: Jan Palach.
Anotadas por mim, pela ordem estão as seguintes declarações tiradas de "Interrogatória à Distância":
"Houve época em que eram socialistas todos os que simpatizavam com os oprimidos e humilhados, todos os que se opunham às vantagens imerecidas, aos privilégios hereditários, à injustiça social e às barreiras imorais a que o homem era condenado a se submeter, perdendo sua dignidade. Eu era socialista nesse sentido 'moral e afetivo' e o serei sempre, mas não designo minhas posições com esse termo".
Sobre as peças classificadas de teatro do absurdo, gênero em que enquadram alguns de seus trabalhos:
"Essas peças colocam diante de nós, de uma maneira funesta, o problema do sentido, representando a sua ausência. O teatro do absurdo não propõe nem consolação, nem esperança. Ele nos lembra que a vida é sem esperança. Um dramaturgo do absurdo não se considera mais informado ou mais consciente da realidade que seu espectador. Ele se sente obrigado a formular o que faz sofrer a todo mundo e a lembrar, de uma forma sugestiva, o mistério diante do qual nós permanecemos impotentes".
Sobre sua missão política:
"A idéia de que o escritor é a consciência de sua nação em nosso país é historicamente justificável: os escritores desempenharam um papel de homens políticos, a renovação da comunidade dependia deles, eles mantinham a língua viva, estimulavam a tomada de uma consciência nacional...
"Confesso que às vezes tenho vontade de gritar: não quero me tornar um líder da nação, quero fazer apenas o que tenho a fazer como escritor -dizer a verdade. Ou então: não busquem a esperança naqueles por assim dizer profissionais da esperança, tratem de buscar em vocês mesmos. Ou então: tratem de correr algum risco, não sou o seu redentor.
"Mas, no último momento, eu me calo, não grito nada. Repito o que me dizia Jean Patocka: a verdadeira prova de um homem não consiste na maneira em que realiza o que decidiu, mas na maneira em que desempenha o papel que o destino lhe reservou".
Muitos anos se passaram desde a publicação de "Interrogatória à Distância". Soube que Havel viria ao Brasil por uma amiga tcheca, Vera. Ela estava organizando uma visita a uma escola de samba do Rio e queria minha ajuda.
Se pudesse, disse, iria a Praga entrevistá-lo. Avaliar as mudanças que estes anos trouxeram. E contribuir para lembrar um pouco que, do meu ponto de vista, recebemos um homem extraordinário e talvez não tenhamos nos dado conta.
Vimos sua foto no jornal entregando um livro a FHC: "Carta a Olga". São textos escritos na cadeia, para sua mulher. Ele descrevia assim, sua relação sentimental:
"Como é sorte de numerosos mortais, minha vida foi marcada por várias relações afetivas e na minha contabilidade celeste há mais de um pecado.
"Entretanto, se há uma certeza na minha vida, essa certeza é Olga. Conhecemo-nos há 33 anos e vivemos juntos há 30. E há 30 compartilhamos todos os momentos de felicidade e desgraça. Mesmo se não houvesse mais nada, isso nos liga, e nos ligará sempre. Nossos caráteres são os mesmos: sou um filho de burgueses, um intelectual, constantemente indeciso, criado nas mãos de uma mãe dominadora, precisava de uma mulher enérgica a quem pudesse colocar as questões...
"Olga dá resposta às minhas incertezas, corrige com sua clareza de espírito minhas idéias um pouco loucas, ela é o apoio íntimo dos meus atos públicos. Sempre pedi conselhos em tudo o que faço (as más línguas espalham que peço aprovação para minhas aventuras que a ferem e que devo ouvir sua opinião sobre minha vida afetiva 'excêntrica')... Mesmo se não fazemos mais declarações de amor há séculos, sabemos que somos inseparáveis...".
Quando o vejo passar pelo Brasil, me pergunto: Václav Havel, um acidente histórico tcheco ou um novo tipo de líder para o século 21? Não conheço bem o seu país, mas creio que na Suécia já se amadureceu para isso. As últimas notícias que tenho de lá revelam um avanço cada vez maior na postura dos políticos.
Por aqui, no entanto, a barra ainda está pesada. Em 89, Havel ainda estava preso e no Brasil era o ano de Collor.

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