São Paulo, domingo, 29 de setembro de 1996
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Caetano expõe caras e contradições do país no 'Roda Viva'

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nada mais justo, do ponto de vista da relevância cultural, nada mais acertado, em termos jornalísticos, do que comemorar os dez anos de existência do programa "Roda Viva" entrevistando Caetano Veloso.
Afinal, trata-se de uma daquelas poucas figuras cuja trajetória pessoal ilumina e se confunde com a história recente do Brasil, com suas complexidades, suas contradições, riquezas e pontos cegos. Caetano encarna, para falar em jargão, todo um processo social. O programa que foi ao ar na última segunda-feira se ocupou obsessivamente do Brasil. Havia ali um desejo e uma preocupação, muito típicos dos anos 60, de passar o país a limpo, de entender, como disse Caetano, a contradição entre as forças afirmativas do modo de ser brasileiro e o fato de o Brasil nunca ter conseguido se transformar numa sociedade saudável, capaz de se livrar do subdesenvolvimento.
O economista Eduardo Giannetti da Fonseca foi ao ponto quando perguntou a Caetano se não haveria um desacordo intransponível entre uma certa alegria primitiva da alma brasileira, uma força intuitiva e selvagem da cultura mestiça e, por outro lado, a aspiração aos valores básicos da vida civilizada, o respeito às leis e a realização dos valores republicanos.
Um pouco à maneira antropofágica de Oswald de Andrade, que também é a sua, Caetano sugeriu que, mais do que combinar esses elementos, o Brasil teria as condições de "tomar posse" da civilização, de incorporá-la sem com isso sucumbir à frieza da vida burguesa. Essa é, afinal, a utopia tupiniquim, à qual todos nós estamos de certa forma condenados. Mas se o "Roda Viva" teve instantes memoráveis quando discutiu o Brasil, também ficou a sensação de que havia na bancada de entrevistadores uma timidez excessiva, uma reverência meio inexplicável, um receio de incomodar o ídolo entrevistado com perguntas consideradas embaraçosas.
Uma das dificuldades do jornalismo é justamente saber incomodar sem agredir ou ser simplesmente estúpido, é ser inconveniente sem invadir a intimidade do entrevistado, ou, invertendo a fórmula, é saber respeitá-lo sem com isso parecer subserviente. Foi isso que soube fazer, talvez no momento mais "impertinente" e tenso do programa, o jornalista Marcos Augusto Gonçalves, quando exprimiu sua perplexidade diante do fato de ver Caetano "abrindo sua casa" à revista "Caras". Como conciliar esse gesto tão "Cid Moreira", tão "Carmen Mayrink Veiga", com o tropicalista que provocou um dos maiores curto-circuitos culturais do país, com a pessoa que subia ao palco usando batom e não cansou de confundir cabeças à esquerda e à direita? Sinal dos tempos? Caetano tentou diminuir o alcance da questão. Respondeu simplesmente que os jornalistas que o abordaram "eram muito simpáticos" e que não via "nenhuma razão especial nem para fazer nem para não fazer aquilo".
Numa democracia, desde que não desrespeite a lei, cada um é livre para fazer o que quiser, mas não há como negar a evidência de que "Caras", mais do que uma revista, é a "cara" escarrada de um certo Brasil que o próprio Caetano tratou de condenar durante a entrevista. Uma revista que faz da confusão sistemática entre o público e o privado a razão de sua existência, que escancara sem o menor pudor a intimidade e a "cafonália" de novos-ricos sorridentes tomando champanhe ou imersos em banhos de espuma. Se fosse na Suíça, seria só jeca e anti-republicano. No Brasil, além disso, é também um acinte.
No país reconciliado que Caetano vislumbra e nos ajuda a vislumbrar não haveria espaço para isso.

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