São Paulo, segunda-feira, 30 de setembro de 1996
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Três em um

JOÃO SAYAD

Os argumentos lógicos são gozados. Partem de uma base bem sólida -a premissa inicial, "todos os homens são mortais". A partir desse apoio, dão um salto: "Pedro é homem" e logo "Pedro é mortal".
Quanto mais sólido o ponto de apoio inicial, mais variadas podem ser as conclusões. O pulo pode nos levar a qualquer lugar. Às vezes, ponto de apoio e impulso são tão vigorosos que acabamos voltando ao ponto inicial. Como sei que todos os homens são mortais? Será que o melhor ponto de partida não seria "Pedro é mortal"? O sólido ponto de partida não é o ponto de chegada? Pensar não tem começo.
Se tomarmos todos os cuidados necessários, corremos o risco de não chegar a lugar nenhum: o Pedro é o Pedro e os mortais são mortais.
Segundo a jornalista Eleonora de Lucena, um artigo do Gustavo Franco está apresentando a seguinte argumentação: não existe incompatibilidade entre crescimento, estabilidade e distribuição de renda, como afirmavam o ministro Delfim Netto (primeiro cresce o bolo, depois distribui) e os estruturalistas (a inflação resulta do desenvolvimento). Se crescer a produtividade, os três objetivos podem ser atingidos de uma vez só. A jornalista chamou a proposta de três em um.
É um argumento lógico. Produtividade é produção por unidade de fator. Um pizzaiolo que produza três pizzas por hora tem produtividade três. Outro que produza duas pizzas tem produtividade dois. Para um país, o aumento de produtividade é equivalente a aumento de produto ou renda per capita (como se cada brasileiro fosse um pizzaiolo), ou seja, ao crescimento. Dada a definição, o argumento seria: a solução para o crescimento com estabilidade e melhor distribuição de renda é o crescimento. Ninguém pode discordar. O Pedro é o Pedro.
Mas será que a produtividade resolve o problema de distribuição de renda?
Se apenas um pizzaiolo conseguir produzir três pizzas por hora, melhor para ele. Pode sair mais cedo ou exigir salário maior do dono da pizzaria.
Se todos os pizzaiolos tiverem produtividade maior e não forem sindicalizados, a concorrência entre eles fará com que o salário caia. E o ganho da produtividade do pizzaiolo passa para o dono da pizzaria. Produz mais com o mesmo salário.
Se o mercado de pizzas for competitivo, as pizzarias concorrem entre si, e a produtividade maior dos pizzaiolos resulta em preços menores das pizzas.
O efeito sobre a distribuição de renda depende do grau de competitividade de cada grupo -pizzaiolos e donos de pizzas. Se existir sindicato, os ganhos de produtividade ficam com os pizzaiolos por meio de salários iguais e menos trabalho, ou salários maiores com trabalho igual. Se existir associação de restaurantes, o ganho fica com os donos de pizzaria.
A conclusão depende muito da situação do mercado de trabalho. Se existir pizzaiolo desempregado, os sindicatos serão fracos, os salários cairão, e o ganho de produtividade ficará com os donos de pizzaria. Conclusão: não dá para concluir a partir da produtividade. Tudo depende do desemprego.
Além de não podermos concluir, ficamos com dúvidas sobre a hipótese inicial. Por que aumentou a produtividade dos pizzaiolos? Se o aumento de produtividade exigir esforço, treinamento ou tecnologia, o pizzaiolo e o dono da pizzaria só vão investir em produtividade se conseguirem ficar com um pedaço do ganho. A questão, portanto, é saber por que existe aumento de produtividade e quem ganha neste aumento.
A história do que aconteceu não tem a instabilidade da lógica. Até meados dos anos 70, os pizzaiolos estavam todos empregados e por isso podiam exigir salários maiores.
A produtividade dos pizzaiolos crescia, mas havia pressões inflacionárias: salário maior para os pizzaiolos reduzia o lucro das pizzarias. Os donos das pizzarias aumentavam o preço da pizza para se defender. O impasse era resolvido pela inflação.
A partir de 1979, a solução encontrada foi a seguinte: diminuir a produção nacional de pizzas. Os gordos emagreceriam um pouco, o que é bom, e azar dos magros.
Com produção nacional de pizzas menor, começou a sobrar pizzaiolo. E a pressão por aumentos salariais diminuiu.
Além disso, passou a valer a pena aumentar a produtividade dos pizzaiolos. Porque agora, com pizzaiolo sobrando no mercado, os ganhos de produtividade não aumentam os salários dos pizzaiolos que, ameaçados pelo desemprego, não tinham coragem de pedir aumento de salários. Pelo contrário -mais produtividade, menos pizzaiolo e menos pressão salarial. O aumento de produtividade dos pizzaiolos se transforma em lucro das pizzarias.
A conclusão é totalmente diferente: o aumento de salários é que exigiu aumento de produtividade e desemprego. Não há inflação, aumenta o desemprego e a distribuição de renda piora. É mais ou menos o que aconteceu no mundo a partir de 1979.
A solução três em um pode ser reinterpretada: com desemprego, o aumento de produtividade não se transforma em salário nem em inflação. De qualquer forma, continuamos a favor do aumento da produtividade.

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