São Paulo, domingo, 5 de janeiro de 1997
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O Grande Robert

ROLAND BARTHES

O Grande Robert é um jovem hipnotizador canadense, atualmente bem conhecido na França, onde há pouco fez adormecer alguns milhares de pessoas nos palcos do Alhambra e do Olympia. As sessões do Grande Robert fazem um enorme sucesso e, se não suscitam deleite, ao menos despertam curiosidade: platéias lotadas, voluntários incontáveis, sonolências fáceis e espetaculares.
Naturalmente, todos se perguntam sobre o que haverá de verdadeiro nas hipnoses do Grande Robert. Serão autênticas? A abundância de voluntários parece excluir qualquer truque. É claro que nem todos os que sobem ao palco chegam a adormecer: uns, refratários ou céticos, são evacuados a um sinal discreto; outros, provavelmente prisioneiros de seu próprio jogo, adotam uma espécie de torpor neutro, que os dispensa de infligir ao Grande Robert um desmentido demasiado flagrante. Mas há o resto das cobaias -pelo menos 15 por sessão-, cujos corpos juncam o palco antes de executarem os gestos que lhes serão ordenados por sugestão: são homens adultos, jovens e mesmo rapazolas; não há por que suspeitar da autenticidade de seu estado. Se é verdade que a hipnose é uma reação histérica e que a própria histeria é um comportamento teatral, então como deve ser fácil produzi-la diante de milhares de espectadores! Os hipnotizados do Grande Robert provavelmente já escolheram o papel que desempenharão (sem entretanto terem consciência de que se trata de um papel: sabemos da existência de intenções inconscientes) antes mesmo de comprarem seus ingressos; ou melhor: é com a garantia de poderem assumir espetacularmente seu papel de hipnotizados que se decidiram a ir ao Grande Robert. Daí a abundância de voluntários, seu espírito de determinação (a maioria aguarda silenciosamente, junto aos corredores da platéia, o momento em que o Grande Robert os convidará a subir ao palco), sua seriedade, sua falta de rancor e mesmo de surpresa no momento do "despertar".
A hipnose é em si mesma teatro (inconsciente), ela se efetiva mais facilmente quando se lhe fornece a maior quantidade possível de teatro. É aí que o Grande Robert se supera: a despeito de sua vulgaridade, ou talvez por causa dela, esse homem captou muito bem as duas ou três leis que fazem a força, a espessura de uma teatralidade; seu papel é o de fornecer uma situação teatral às suas cobaias. É claro que o conteúdo do espetáculo é de uma qualidade execrável, dolorosa mesmo. O que não impede que a receita tenha seu interesse; de resto, ela tem lá seus fiéis seculares.
A primeira lei diz respeito à preparação. O teatro não existe plenamente se não for esperado por longo tempo, precedido por uma dessas "angústias vagas" cujo caráter simultaneamente social e fisiológico foi sublinhado por Mauss. Com o Grande Robert, o teatro começa bem antes da sessão: a curiosidade do público -a priori muito intensa, já que tão-somente ela conduziu-o ao espetáculo- é cuidadosamente mantida, ou seja, dilatada: o programa começa com uma primeira parte copiosa; o entreato misteriosamente encurtado obriga os numerosos retardatários a perturbar, a dispersar uma atenção ávida de se concentrar; e os passes de hipnose são precedidos de um discurso do Grande Robert -bem longo, bem moralista e bem aborrecido. O teatro parece surgir por si só dessa espera coletiva retardada, perturbada, enganada -numa palavra: avivada-, cuja espessura crescente é evidentemente o melhor terreno possível para uma reação histérica, capaz que é de transformar em teatro o que quer que lhe suceda.
De modo geral, o vazio que precede o teatro dos nossos dias é puramente negativo. Qual excitação pode haver em esperar que se abram as cortinas, quando sabemos de saída que não escondem mais que móveis falsos de um salão de 1830 ou as eternas colunas da tragédia antiga? O teatro emascula-se de antemão se não o esperamos com todo nosso corpo, se essa espera não é compartilhada por toda uma coletividade. Certos espetáculos de vanguarda, por exemplo, não são nem sequer passíveis de julgamento, dada a magreza de seu público. É o próprio ato teatral -sua plenitude e não só seu sucesso- que é tributário do calor prévio do público, da coesão de seus impulsos e da unidade de sua espera (basta pensar nas preliminares de uma tourada).
Outra lei que serve de motor ao espetáculo do Grande Robert: a transgressão de um privilégio espacial. Sabe-se que no teatro burguês a separação entre público e palco é rigorosa (ainda passa por ultravanguardista uma dramaturgia que extravasa para o espaço da orquestra ou que faz ocasionalmente surgir um ator em meio à platéia). Ora, uma sessão de hipnotismo deve, por definição, misturar dialeticamente os dois planos: as cobaias vêm livremente do meio do público e, no mesmo momento em que sua passagem ao palco investe-os de uma condição singular, "outra", eles não cessam de fazer parte do público que acabaram de deixar. Essa união de duas condições contraditórias não poderia ter efeito muito prolongado: ao cabo de um tempo bastante curto, o hipnotizado passa a interessar menos e menos ao público, que nesse ínterim acostumou-se a ver nele uma espécie de outrem funcionalizado, no qual não se reconhece mais; não obstante, trata-se de um fator poderoso de perturbação teatral para um público que vê transgredida sua condição de espectador, que se imagina alvo de inumeráveis olhares no mesmo instante em que gozava, lá em suas cadeiras, da segurança de seu anonimato.
Naturalmente, todo esse mecanismo pressupõe que se reserve ao palco um máximo de delimitação: as cobaias do Grande Robert, dispostas em círculo como se sob a direção de um maestro ou de um domador, são oferecidas à platéia como se a uma devoração, o que faz com que de certa maneira a platéia devore a si mesma. Talvez seja possível arriscar que a teatralidade mais intensa dá-se justamente por meio dessa transgressão instável do espaço cênico, nesse extravasamento virtual do palco sobre a platéia, que faz pensar nos antecedentes históricos dessa lei de estrutura: coro da tragédia grega; circunscrição de toda a aldeia como local mágico em certas festas africanas; invasão da arena por aficcionados da tauromaquia. Estas indicações poderiam servir de contribuição ao problema do palco aberto.
Infelizmente, a essa busca de um teatro intenso, necessário por natureza a uma sessão de hipnotismo, corresponde aqui um espetáculo de conteúdo degradante, visto que se trata sobretudo do espetáculo de uma submissão (a hipnose não sendo mais que uma forma espetacular de submissão). O Grande Robert, hipnotizador astucioso, não deixa de multiplicar os signos de uma dominação particularmente pegajosa: físico "ideal" de jovem astro cinematográfico, argumentos meio morais, meio médicos, fonética encantatória, ordens visando a tornar grotescas as cobaias (que devem assumir poses de manequins ou portar acessórios infamantes: chapéus ridículos, vassouras, desentupidores de pia etc). Não há dúvida de que, para um histérico, tudo isso é eficaz na medida mesma em que a humilhação é uma técnica da teatralidade. Para o público, a coisa é diferente, e creio que ele é logo levado à náusea por tanta baixeza: ele sente que isso que lhe oferecem como motivo desopilante ameaça-o na própria estrutura de sua pessoa. Se alguém tentar algum dia descrever a economia geral dos tabus do nosso tempo, não poderá deixar de indicar a contradição entre a pudica indignação da nossa sociedade diante, por exemplo, dos espetáculos que envolvem erotismo e sua indulgência frente à representação de tudo o que degrada o homem. Sem dúvida haverá aí algum seu interesse em jogo: deve ser necessário à sua manutenção que se possa apor às suas alienações reais a máscara tranquilizadora de uma "distração sadia".

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