São Paulo, quarta-feira, 8 de janeiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Verão de SP nos transporta ao livro de Bruno Schulz

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Estes dias de verão, quentes e vazios em São Paulo, são capazes de nos transportar diretamente para as páginas de um livro. Refiro-me a um dos melhores livros lançados em 96, "Lojas de Canela", do polonês Bruno Schulz (1892-1942), editora Imago.
O primeiro conto do livro começa assim: "Em julho meu pai viajava para uma estação de águas e me deixava entregue com minha mãe e meu irmão mais velho à voragem dos dias de verão, estonteantes e brancos de calor. Embriagados com a luz, folheávamos este grande livro das férias, cujas folhas todas ardiam de fulgor e tinham no fundo a polpa das peras douradas, doce de desmaiar".
Segue-se uma descrição das frutas que a empregada trazia do mercado; depois, um parágrafo que vale por cem poemas, e que não resisto a transcrever.
"A cada dia todo um grande verão atravessava os apartamentos escuros no primeiro andar do prédio junto à praça da cidade: o silêncio dos anéis trepidantes de ar, os quadrados de fulgor sonhando o seu sonho ardente no assoalho; a melodia do realejo, arrancada do mais profundo veio de ouro do dia; dois, três compassos de um refrão de piano, tocados sempre de novo em algum lugar, desmaiados ao sol das calçadas brancas, perdidos no fogo do dia profundo. Depois de arrumar a casa, Adela estendia a sombra pelos quartos puxando as cortinas de pano. As cores então desciam uma oitava..."
E assim por diante. Já comentei nesta coluna o primeiro livro de Bruno Schulz a ser traduzido no Brasil, "Sanatório". Junto com "Lojas de Canela", completa praticamente a totalidade da obra ficcional deste escritor.
O que mais chama a atenção é a beleza com que Schulz descreve as mudanças no clima. Inverno, verão, outono não são para ele simples estações: são mitos, forças dotadas de vontade própria, realidades caprichosas.
Talvez os verdadeiros personagens de seus contos sejam o céu, o calor, o vento. As pessoas, os seres humanos, têm pouca densidade psicológica; são na verdade os fantoches, os manequins de alguma coisa mais extensa, mais forte, mais vital: o tempo.
Não a simples passagem do tempo, mas sim a loucura do tempo, do clima, das estações. E o clima não incide diretamente sobre as pessoas, mas sobre a cidade em que vivem.
O inverno, por exemplo, é a época "em que a cidade se ramificava cada vez mais fundo nas noites... e custava-lhe atender às chamadas ao retorno e ao juízo da curtíssima madrugada". Uma tempestade "deixava um vazio branco nas ruas, varria pedaços inteiros do mercado". O vento, de noite, "já não visitava as casas e os telhados, mas construía sobre a cidade um espaço múltiplo, espaço de muitos andares, um labirinto negro crescendo em pavimentos infinitos" e depois deixava "desmoronarem esses andares imaginários".
Seria errado, todavia, resumir os contos de Bruno Schulz a essa espécie de meteorologia poética. Só por esse aspecto, sem dúvida, Schulz já merece atenção, como um dos poucos herdeiros de Rimbaud, como um dos autênticos visionários deste século.
Mas há, a meu ver, outras duas coisas em questão. A primeira é o interesse de Schulz na vida doméstica, no interior burguês, no espaço fechado da casa, que aparece como contraponto dessas vastas orquestrações do céu que ele descreve.
Seus contos são narrados da perspectiva de um menino, filho de um rico comerciante de tecidos. A casa paterna está tão cheia de vida e de segredos quanto o mundo.
"Com o refluxo da noite, o papel de parede começava a murchar, enrolar-se, perder folhas e flores..." Ou: "O assoalho branco e vazio crepitava em silêncio e, assim iluminado, contava em comprimento e largura os seus quadrados brilhantes, o xadrez das grandes placas que conversavam em silêncio com estalos, respondiam uma a outra estourando aqui e acolá."
Tudo ganha vida, assim, aos olhos do narrador. O papel de parede, o assoalho, os panos empilhados na loja de tecidos do seu pai, conversam misteriosamente. Há muito de maravilhoso nisso, mas também algo de terrível.
Esse é o segundo aspecto a destacar em Bruno Schulz. Essa vida misteriosa dos objetos não é simples animismo poético. É também um ato reprodutivo, uma multiplicação da espécie, uma sexualização devassa. "Devassidão" é um termo que volta e meia aparece nesses contos.
O mofo, os cogumelos, os insetos são a contrapartida repugnante dessa vivificação do mundo material. O próprio mês de agosto é capaz de originar rebentos monstruosos: em sua "vitalidade dissoluta e tardia", "às vezes agosto passa e o velho, grosso tronco do verão continua gerando por hábito, expelindo de sua carcoma aqueles dias bravos, dias-joios, estéreis e idiotas".
Um jardim desordenado "perdia todas as medidas e era tomado de fúria. Ali já não era um jardim, mas um paroxismo de loucura, uma explosão de raiva, um impudor cínico e uma devassidão". Tudo se multiplica, tudo se sexualiza, numa vitalidade decadente.
Justamente essa "explosão de raiva" do jardim se repete em outro conto, quando Schulz descreve a explosão de raiva de seu pai, lojista de tecidos, ao perceber que os vendedores da loja não estavam a postos para receber os fregueses. Tinham preferido ir namorar a empregada Adela.
O pai escala as prateleiras e derrama os rolos de tecidos no balcão, no assoalho da loja. Transforma-se num Moisés. "E em baixo, ao pé deste Sinai que crescia na ira de meu pai, o povo gesticulava, maldizia e venerava Baal. E fazia negócios. Enchiam as mãos de pregas macias, ornavam-se com panos coloridos... entregavam-se a um divertimento libertino."
Compra e venda como libertinagem, o comércio como reprodução pecaminosa, o lucro como geração, a mercadoria sexualizada: na obra de Schulz, a prosopopéia, a vida de que os objetos se imbuem poeticamente, é também um fetichismo da mercadoria, para falar como Marx; é também um escândalo, uma devassidão, uma tara.
Pode-se entender, a partir daí, o delírio que Schulz atribui a seu pai, já senil, em três contos desse livro. É o que ele chama de "tratado dos manequins", segundo o qual, para rivalizar com Deus, deveríamos criar seres vivos, mas incompletos, sem face, mutilados, utilitários.
"As nossas criaturas", diz o pai, "não serão heróis de romances volumosos. Seus papéis serão curtos, lapidares, seu caráter sem profundidade... Não faremos questão da durabilidade ou solidez do produto, as nossas criaturas serão como que provisórias, feitas para servir uma só vez. Se forem seres humanos lhes daremos, por exemplo, apenas metade de um rosto, um braço, uma perna, aquela que seu papel exige."
Esse delírio ganha realidade em outro conto do livro, "A Rua dos Crocodilos", onde as pessoas mal têm rosto, onde as lojas são só fachada, onde uma incompletude total toma conta do ar empesteado, abortivo, espesso. Schulz descreve a reprodução do capital, a vida louca das mercadorias.
Mas vale a pena ler apenas, sem mais interpretações ideológicas, o seguinte trecho de "A Rua dos Crocodilos": tudo "não é senão a fermentação dos desejos de uma exuberância precoce, por isso exânime e vazia. Aqui, numa atmosfera de demasiada facilidade, brota qualquer capricho, qualquer tensão passageira incha e cresce numa excrescência bojuda e oca... A rua dos Crocodilos era uma concessão de nossa cidade à modernidade e à corrupção da grande metrópole. Poderíamos então dizer que, por falta de outras possibilidades, tivemos de nos satisfazer com uma imitação de papel, com uma fotomontagem de recortes deteriorados de jornais do ano passado".
Comecei este artigo falando de São Paulo; acho que com esta última citação de Bruno Schulz terminei no mesmo lugar. Mais detalhes, só lendo este esplêndido escritor.

Texto Anterior: CLIPE
Próximo Texto: Música latino-americana ganha destaque em Curitiba
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.