São Paulo, sexta-feira, 10 de janeiro de 1997
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Locke por ele mesmo

BENTO PRADO NETO

Resenhando o "Dicionário Rousseau", Franklin de Matos disse recentemente que há autores mais, outros menos dicionarizáveis; poderia ter explicitado que o são por razões diferentes. Isto é, há diferentes razões para se querer ver um pensador exposto na forma de verbetes e, assim, a tarefa de escrever um "Dicionário Locke" não se subordina a um padrão dado de antemão, uniformemente válido.
Posto isso, pode-se avaliar mais justamente o "Dicionário Locke", de John Yolton. A estratégia escolhida pelo autor é explicitada em sua introdução: ele nos diz que se propõe a "descrever o uso que ele (Locke) faz de um termo ao longo de vários livros", "citando passagens explícitas em que estes termos ocorrem", "acompanhadas de notas, mas sem impor minha leitura a seus textos". Enfim, cada verbete procura remeter o leitor aos textos do próprio Locke -"Locke fala por si mesmo através desses verbetes"-, evitando que se sinta o peso do comentador. A estratégia é, assim, de um programa mínimo. Poderíamos dizer, não fossem as ressonâncias pejorativas, uma espécie de índice remissivo, que "não é um substituto dos próprios escritos de Locke, mas pode ser útil como ponto de partida". Essa estratégia rés-do-chão, ainda que possa parecer pobre ou excessivamente modesta, pode ser considerada adequada no caso de Locke, por algumas razões.
Em primeiro lugar, o estilo retórico de Locke -tópico complicado que, como disse certa vez M. Ayers, mereceria um estudo à parte- frequentemente esquiva ou mesmo combate programaticamente as pretensões de uma linguagem técnica; e, em segundo lugar, ou talvez em consequência, a presença de textos em franca (mas, talvez, apenas aparente) oposição entre si. Traços que tornam especialmente útil e interessante, na abordagem desse autor, a contemplação de textos que tratam diferentemente um mesmo tema -ao mesmo tempo em que tornam especialmente perigosas outras estratégias.
Mas essa transparência do dicionarista não é total. Como ele confessa, ou antes promete, temas sujeitos a controvérsias são acompanhados de notas em que procura não impor sua versão; em segundo lugar, menciona "doutrinas de autores antecedentes" e também "influência ou destino, em autores subsequentes, de alguma doutrina encontrada em obras de Locke". Esses dois desvios da estratégia básica obviamente não se constituem em faltas, mas em ganhos, dadas as qualificações do dicionarista. Com efeito, trata-se, em primeiro lugar, de um dos maiores especialistas em Locke (fundamentalmente no "Ensaio Acerca do Entendimento Humano", mas, como o leitor perceberá, com perfeito domínio de todo o "corpus lockeano") e, em consequência, só temos a lucrar com suas notas semi-imparciais.
Além disso, seu trabalho de pesquisador navega pelas águas territoriais de Locke na história das idéias. O leitor pode, então, ter segurança com relação ao material ali encontrado: o rastreamento das ocorrências dos diferentes termos e de suas interconexões baseia-se no convívio cotidiano com a obra e recebe o apoio de observações e indicações históricas sempre de primeira mão, fruto do trabalho de um dos maiores especialistas da área. Não se poderia pedir uma melhor escolha para dicionarista de Locke.
É verdade que algo dessas qualidades se perde no caminho. Em primeiro lugar, o estilo rés-do-chão, descritivo e enumerativo, que ecoa o estilo do "Ensaio" (quase um dicionário, aliás) e seu "plain, historical method", às vezes peca (ou choca uma sensibilidade diferente) no tom e na própria escolha dos textos. Assim encontramos frases do tipo "Locke preocupava-se muito com a busca da verdade", ou "Verdade e felicidade eram dois fortes objetivos para ele, erro e infortúnio males a ser evitados". E na seleção de textos, a isenção do comentador se transforma, às vezes, em dispersão, mero inventário de "doutrinas, teoria, conceitos e opiniões" ou "crenças, teorias e atitudes" do "filósofo"; assim as duas páginas consagradas ao interesse "não-teórico" de Locke por animais, cujo alvo parece determinar se sua obra deve ou não ser colocada no index da sociedade protetora dos animais. O que, seja dito, nada retira da "grande fidedignidade e rigor" do dicionário.
Problema, de fato, reside na passagem do texto para o português. O tradutor optou por reproduzir a tradução do "Ensaio" da coleção "Os Pensadores", seja por não ter cotejado essa tradução com o original, seja por ter acreditado necessário manter uma tradução já estabelecida. Qualquer que seja a razão, foi uma má escolha, cuja consequência é que a maioria das citações do "Ensaio" é ou simplesmente incorreta, ou francamente ilegível. O que acaba comprometendo, no tocante ao "Ensaio", a grande virtude do dicionário: com efeito, nestes casos, não é mais Locke que "fala por si mesmo através desses verbetes".
Ah, e também não é verdade que Locke afirme no "Ensaio" (3.6.23) ter "assistido ao parto de uma gata e de uma rata", como aparece na edição brasileira do dicionário, à pág. 41. Ele disse apenas: "Certa vez vi uma criatura que era cruza de gato e rato, e nela trazia as marcas evidentes de ambos".

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