São Paulo, sábado, 11 de janeiro de 1997
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Para Stanley Kubrick, conhecer é matar

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

O cinema moderno criou dois futuros igualmente fascinantes e distantes entre si. Um é o de Godard, em "Alphaville". O outro, o de Stanley Kubrick, em "2001 - Uma Odisséia no Espaço".
Formalmente, a vantagem do filme de Godard consiste em projetar para o futuro o homem dos 60, confrontando suas aspirações à liberdade e um mundo em que a existência é ferozmente impessoal e controlada.
O futuro de Kubrick, ao contrário, é atemporal. Começa num passado pré-histórico, no momento em que o homem-macaco descobre a possibilidade de transformar uma "coisa" em instrumento, um osso em arma.
Essa aurora da inteligência é lançada aos ares como um mistério e, em seu vôo, transforma-se em uma nave espacial, milhões de anos depois.
A odisséia de "2001" é, portanto, a do conhecimento. Algo que, a um tempo, precede a existência humana e está além dela.
Quando transforma a "coisa" em arma, o homem-macaco torna-se humano, porque adquire a faculdade de dar significado às coisas. Ao mesmo tempo, Kubrick nos introduz aí a uma de suas obsessões temáticas mais frequentes, que é a capacidade humana de matar (ver "Doutor Fantástico", "Nascido para Matar" e tantos outros).
Conhecer é matar. O homem cria instrumentos mortais que são, igualmente, tecnológicos. É isso que o distingue dos outros animais: a cultura. A capacidade de criar símbolos retira-lhe toda inocência possível.
É uma espécie de pecado original. Já não se mata para comer ou sobreviver, como fazem os animais. Há o assassinato, a consciência da morte, a dor, e também o prazer de matar o inimigo.
Essa tendência destrutiva coabita com a faculdade de criar. A mesma tecnologia que gera armas e mortes projeta o homem ao espaço sideral. Do momento em que o osso-arma voa pelos ares, já estamos condenados à pergunta: quem sou eu? Essa é a questão dos astronautas da nave Discovery.
Na verdade, estão no que Norman Kagan chamou de "turbilhão cósmico", em que Kubrick iguala passado (o osso), futuro (a nave) e eterno (o monolito, figura misteriosa que habita o filme).
O que os astronautas consideram um "desarranjo" da máquina na verdade é o momento em que HAL adquire a capacidade humana de entender. De um processador de dados, transforma-se em alguém capaz de matar (quer liquidar os astronautas e assumir o comando da missão).
Aos humanos, restará a possibilidade de desligar o computador (isto é, matá-lo). Essa hipótese será levada a efeito com toda a dor que implica a prática de um assassinato.
Ao longo do filme, o que se discute é a existência de vida inteligente fora da Terra e fora do homem. Essa vida será personificada por HAL-9000. O fato de ser uma criação humana será um detalhe secundário.
Kubrick não discute a tecnologia, seus perigos, seus horrores. Ela existe, ponto. Do momento em que o osso vira arma, estamos diante de uma engrenagem que entra em movimento e não poderá mais ser detida. A questão ("quem somos nós?") está lançada, literalmente, no espaço, onde planará, ora docemente, ora tumultuadamente.
Se "2001" é um prodígio, isso se deve em grande parte à sua capacidade de absorver forma e conteúdo de maneira harmônica. Kubrick gastou quatro meses e meio para fazer as tomadas com atores. Levou um ano e meio para filmar os 250 planos envolvendo efeitos especiais.
Existiria desproporção se se tratasse de um cineasta humanista, em que o homem é o centro do espetáculo (e do universo). Em Kubrick, porém, o homem não é centro das coisas, mas circunstância. O espetáculo, sim, é o centro. É o instante mágico em que esse ser trágico, perdido no tempo e no espaço, torna-se visível e inteligível.

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