São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 1997
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O reflexo do divino

ROBERT MAGGIORI
DO "LIBÉRATION"

Entre o herói de Homero ou o camponês de Hesíodo e esse homem racional que Aristóteles qualifica de "animal político", que mutações sofreu o homem grego? O que mudou nos seus modos de raciocínio, nas suas formas de conceber o tempo, o espaço ou a memória, nas suas maneiras de querer, de imaginar, de agir?
Para sabê-lo, deve-se explorar "tudo o que o homem antigo produziu nos diversos setores da vida coletiva, desde seus utensílios e técnicas, até seus mitos e deuses, passando pelas instituições da cidade, o direito, as grandes criações literárias e plásticas, os compêndios científicos". Tarefa infinita, à qual Jean-Pierre Vernant (nascido em 1914), professor honorário do Collège de France, continua incansavelmente a se dedicar.
Vida de pesquisador que Vernant nem mesmo um segundo separou de sua vida de militante político. Em "Entre Mito e Política", ele trafega de um ao outro, investigando a política que está no mito e revelando os mitos oriundos da política. Efetivamente, não há como se enganar. O olhar que Vernant fixa sobre a Grécia longínqua é "suspeito". Ele quer é ver o que acontece aqui e agora.
*
Pergunta - Seu livro seria intitulado "Parcours" (Percurso). Vários textos retraçam sua biografia, política e intelectual, da qual o sr. diz que é feita de "acaso e de necessidade". Qual é o papel de cada um?
Resposta - Meu avô foi o fundador e diretor do "Briard", um jornal republicano e anticlerical. Deveria ter sido professor de filosofia -ele havia sido admitido em concurso em 1908 ou 1910. Mas ele herdou o "Briard", em seguida se engajou como segunda classe na infantaria e foi morto. Jamais o conheci. Minha mãe também morreu quando eu era bem jovem. Nos mudamos de Provins, meu irmão Jacques e eu, para estudarmos. Entrei no colégio Carnot quando fazia ainda xixi nas calças e saí de lá universitário.
Meu irmão obteve o primeiro lugar no concurso para professor de filosofia em 35, e eu, em 37, fiquei em primeiro também. Imediatamente fui para o Exército. Fiquei por lá até a derrota. A partir de julho de 1940, meu irmão e eu começamos a agir. Nesse momento, não houve muito acaso.
Pergunta - E seu engajamento na Resistência?
Resposta - O fato mais importante é que eu havia sido um militante comunista. No início dos anos 30, eu estava completamente engajado na luta contra os fascistas, que manifestavam e "quebravam os vermelhos". A ascensão do nacionalismo me parecia monstruosa. Desde a chegada de Pétain, eu não tive a menor dúvida sobre a necessidade do combate.
Pergunta - O fato de ser filósofo teve alguma influência?
Resposta - Eu amava a filosofia, claro. Eu me identificava com uma certa tradição, admirador de Spinoza e Platão, e em meu bacharelado fiz uma monografia sobre "A Noção de Vida no Pensamento de Diderot". Para mim, não havia ruptura entre minha maneira de pensar filosoficamente e meu engajamento político.
Veja bem, uma noção tão essencial à filosofia quanto a "philia", a amizade, não era estranha ao que acontecia nas redes da Resistência! Nós tínhamos razões políticas para lutar e razões vitais: minha mulher era judia, como muitas outras... Mas o que era essencial era o grupo mesmo, a maneira pela qual se criaram os canais de comunicação, os núcleos de afeição, as cumplicidades, a camaradagem, a confiança e a dedicação recíproca. De tudo isso "alguma coisa" circulava para criar uma comunidade... Os gregos representavam isso sob a forma de um "daimon" alado, que vai de uma pessoa a outra.
Pergunta - Como o sr. chegou à Grécia?
Resposta - O acaso, aqui, carrega dois nomes: Ignace Meyerson e Louis Gernet. Quando me preparava para o meu concurso, Meyerson era professor de psicologia na Sorbonne. Ele abriu minha atenção para a psicologia histórica, da qual é o fundador, me revelando que ela pode estudar o que é propriamente humano, considerando como objeto de estudo o que o homem produziu em todos os domínios ao longo da história, técnicas, artes, línguas, religiões, instituições, sistemas de pensamento...
Meyerson conhecia muito bem Louis Gernet, decano da faculdade de letras em Argel, helenista, especialista em direito grego, mas igualmente sociólogo, amigo íntimo de Marcel Mauss. Depois da guerra, Gernet foi nomeado por Braudel, que o admirava, para a École Pratique des Hautes Études. Foi Meyerson quem me levou até Gernet. Este era um poço de sabedoria, que sabia tudo da Grécia.
Pergunta - Qual a primeira idéia que o sr. considera ser exclusivamente sua?
Resposta - Sem os meus mestres, e sem Lévi-Strauss ou Dumézil, naturalmente eu nada teria encontrado. Mas me parece, retrospectivamente, que foi na análise de certos mitos -o de Prometeu, por exemplo-, que eu fiz o que outros não fizeram. Ao contrário das práticas clássicas, eu ignorei voluntariamente a fronteira entre os textos literários, jurídicos, filosóficos, econômicos etc. a fim de apreender um sistema global, o único capaz de fazer perceber as formas e níveis de imbricação do religioso, do social, do mental... O que me interessou não foi a reconstituição de tal lenda ou a descrição do Olimpo, mas, para usar uma imagem engraçada, saber como os gregos olhavam para a lua!
Pergunta - Sua popularização começou com "Origens do Pensamento Grego", em 1962?
Resposta - Provavelmente, sim. Era um livro "contra". Eu queria compreender como apareceu na Grécia o pensamento racional. Era uma máquina de guerra contra todos os que falavam do "milagre grego". Mas o livro era também contra o PC!
Pergunta - É difícil acreditar que o sr. tenha ido procurar na Grécia antiga as armas contra o PC.
Resposta - É porque é difícil imaginar o que era a "seção ideológica" do PCF! Toda a demonstração de "Origens" visava enfocar o fato de o pensamento racional ter aparecido na Grécia quando se instaurou o livre debate democrático. A partir do momento em que se faz calar o debate democrático, como acontecia no seio do PC, então o mito se expande e não se pode mais detê-lo!
Pergunta - Qual é a relação exata entre o nascimento do racionalismo e o da cidade democrática?
Resposta - A cidade é menos democracia que política, quer dizer, o fato de que, progressivamente, tudo o que diz respeito às decisões de interesse geral vai se constituir como domínio de realidade e de experiência à parte, pensado como tal. Essas questões de interesse geral não serão mais resolvidas pela decisão de um personagem ou pela consulta ao oráculo, mas propiciarão um debate contraditório, com confronto de opiniões e no qual as argumentações terão primazia. Dessa forma, esboça-se uma mutação fundamental, já que o debate e a troca de idéias, se ainda nos fazem lembrar a arte da retórica, convocam necessariamente a razão, a lógica, e fazem aparecer algumas formas de racionalismo. A razão grega é realmente filha da cidade.
Pergunta - O sr. diz que, para que a cidade se constitua, é preciso que o poder, "kratos", esteja "disposto no centro", que não seja monopólio de ninguém.
Resposta - Isso ocorre, com efeito. O "kratos" não pode ser controlado por um dos membros da cidade, senão instaura-se a tirania. Ele se situa no centro do espaço cívico, como uma espécie de "pote comum", que se compartilha -mais uma vez a "philia"- por meio do debate. A partir do momento em que há discussão, uma outra mudança tem lugar: a autoridade do que é (os deuses, as leis, os costumes...) existe, claro, mas ao mesmo tempo, pode-se perguntar se ela é justa, se as leis são boas e se se pode mudá-las.
Pergunta - "Refletindo sobre a Antiguidade é a nós mesmos que eu sondava, é o nosso mundo que eu questionava", escreveu o sr. Após esse livro, o que se pode dizer sobre o "retorno da religiosidade" ou os "limites da democracia"?
Resposta - Edificar uma cidade é um trabalho de tecelão. Para Platão, existe nessa profissão a urdidura, elemento masculino, e a trama, elemento feminino. No tear, o feminino e o masculino se cruzam, como o vertical e o transversal. Atam-se os pontos, o homem e a mulher, os violentos e os moderados, os pobres e os ricos, os jovens e os velhos... É o tecido social, recobrindo toda a sociedade. Essa metáfora de Platão terá ainda valor? O papel do tecelão foi por muito tempo desempenhado, nas democracias representativas, pelos partidos e seus militantes, pelas estruturas do mundo do trabalho, profissionais, municipais...
Atualmente, um pouco do tecido se reconstitui pela ação das associações, localmente. No entanto, não há mais coincidência entre o social e o político. A máquina política é guiada por profissionais da política: ela funciona "a pleno vapor", mas à parte. E o social não é mais um tecido "unido", tantas são as diferenças que o constituem, mas o "lugar" onde vivem juntos indivíduos isolados ou uniformizados, onde se formam grupúsculos, categorias que se ignoram mutuamente ou, pior, que se enfrentam. Nessa situação, um grego perderia... seu latim.
Pergunta - E o "retorno da religiosidade"?
Resposta - É preciso antes saber o que, na Grécia, se entendia por religiosidade e o que "crer" significava. Um sistema politeísta não funciona como um monoteísta. Os deuses gregos são múltiplos, limitados, estão no mundo. Não há entre os humanos e eles essa distância infinita que existe entre o imperfeito e o perfeito.
A transcendência não tem o mesmo sentido. Os deuses estão "além", pelo fato de que eles são não-mortais, ocupam os estágios superiores do universo, mas vivem no mesmo universo que eu. Eles são "modelos", mas no sentido estético. A dimensão estética é essencial à religião grega. Tudo o que é belo, vivaz, puro, luminoso está no divino. Tudo o que é puro, belo, luminoso no homem é reflexo do divino, e é exatamente este reflexo que faz com que a vida humana possa ser vivida.
A outra grande diferença é que as religiões gregas não são religiões do Livro, não havendo então verdade religiosa. A verdade é descoberta em outras áreas da vida. Há pessoas, filósofos, cuja profissão é ir buscá-la.
O essencial é ter, com relação àquilo que nos extrapola, uma atitude de respeito, e praticar os atos que sempre foram observados como dignos. Ao comer algo entre amigos, bem, você derruba um pouco de vinho para os deuses. Podemos chamar isso de "sentimento da dívida": o homem sabe que ele é um ser inacabado, depende de sua linhagem, de seus pais, é submisso ao tempo, à morte, dessa maneira imagina no seu horizonte alguma coisa que está no "além". A religião é a afirmação que há sempre um "por trás de tudo", um além daquilo em que acredito, daquilo que digo, daquilo que vejo e sou. Mas nenhuma "submissão" aparece.
Os deuses são também cidadãos da cidade, e a participação das atividades religiosas é parte integrante da vida social e deve secretar uma espécie de sentimento da comunidade. Há uma perfeita homogeneidade entre o plano político e o religioso. Mas, a partir do momento em que a religião se atrela a um texto ou a um Deus, a uma verdade indiscutível, ela cria grupos particulares, seitas, igrejas, que por um lado podem querer fustigar os "desvios" dos outros, ou excluí-los, até mesmo destruí-los etc., por outro lado, sonha sobrepujar ou dominar o conjunto do espaço cívico, o que faz a teocracia. O "retorno da religiosidade" hoje decorre do desaparecimento das antigas solidariedades, do desmembramento do "corpo" social, no qual os indivíduos, como Marx dizia do campesinato, são "como batatas num saco". Ao mesmo tempo, traduz a aspiração a outras formas de "comunhão", sectárias, que só se realizam quando amaldiçoam os que "não estão lá", que venceram outros deuses ou vêem a verdade em outros textos!
Pergunta - O sr. continua tentando ver a lua como um grego?
Resposta - Eu tento, mas é difícil, porque "ver" para um grego, não é... ver! Não há para os gregos a idéia de que o sujeito, a consciência humana, constitua uma espécie de universo que tem a sua própria forma de existência, nem que é em seu "interior" que tudo acontece! Não é o mundo que está na minha consciência, sou eu que estou no mundo! Meu olhar passeia pelo mundo como se coloca uma mão sobre a mesa. Com o meu olhar eu tateio o céu, as árvores e as estrelas. O homem é uma parte do mundo.
O correspondente antropológico disso é que entre ver e ser visto há uma relação de reciprocidade fundamental. Somos o que somos a partir do que os outros vêem de nós, e sabe-se disso pelo olhar que os outros lançam sobre nós, o que não deixa de ter consequências do ponto de vista ético ou social!
A organização mental de um grego é tal que ele ignora a introspecção: ele está inteiramente voltado para o exterior. Mesmo sua alma não lhe pertence exclusivamente: ela já serviu e servirá a outros. E, como há exatamente o mesmo número de almas que de astros no céu, o problema é ir encontrar seu astro e não fazer a "descoberta" de si mesmo. Tanto que, mesmo admitindo formas incompatíveis de alteridade -crianças, mulheres, escravos, bárbaros-, o grego, não conhecendo a glorificação de si, ignorará o ódio ao outro.

Tradução de Leonardo Babo.

Onde encomendar:
"Entre Mythe et Politique", de Jean-Pierre Vernant (Seuil, 644 págs., 160 francos), pode ser encomendado à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, fundos, tel. 011/231-4555, São Paulo).

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