São Paulo, quarta-feira, 15 de janeiro de 1997
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Chove muito no mundo do inspetor Maigret

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Televisão é questão de hábito, não de julgamento crítico. As novelas dão prazer pelo fato de serem repetitivas; inscrevem-se na rotina do espectador à medida que encenam a rotina dos outros. Há algo de mágico nesse efeito: pessoas dentro de casa vêem, através de uma caixa, outras pessoas dentro de casa.
Refeições, conversas banais, tiques de linguagem, personagens estereotipadas, tudo é uma grande homenagem à rotina, ao hábito, e desconfio que a intriga propriamente dita, os lances folhetinescos, não interessam o espectador tanto quanto ele pensa.
Desenvolvi um hábito nos domingos à noite: ver, às 21h, a série do inspetor Maigret no canal Multishow, da TV paga.
É que domingo é um dia bem depressivo. Imagino que as taxas de suicídio sejam maiores nos fins-de-semana. Aquele rumor distante de jogo de futebol no rádio, os movimentos de Faustão e Silvio Santos, a tarde caindo e ainda é cedo para pedir a pizza, tudo denuncia o vazio de uma vida que poderia ser mais aventurosa, mais criativa, mais livre e entretanto se resume em simples passar do tempo.
O "Fantástico" é bem sintomático dessa depressão geral. Inventam-se histórias palpitantes, descobertas e milagres, desafios, esportes radicais, enigmas e goleadas, num esforço patético para nos convencer de que a vida vale a pena. Só que é a vida dos outros, e ficamos reduzidos, sem saber, mas sabendo, ao papel de figurantes num épico de Cecil B. de Mille, de basbaques em briga de rua, de inúteis num domingo inútil.
A vantagem da série do inspetor Maigret no Multishow é que os crimes, a história policial, ocorrem sempre em ambientes triviais, pequenas cidades de província, portos sem movimento ou bairros sujos de Paris.
Nada de sensacional acontece: o suspense é raro, as pistas, mínimas, os motivos, poucos, os suspeitos, alguns. Chove muito.
Nessas tramas policiais baseadas em romances de Georges Simenon (1903-1989) não há nada parecido com o encanto de Agatha Christie ou de Sherlock Holmes: nenhuma pista enigmática, pena de pavão, rubi, manuscrito raro deixado no local do crime. Nenhuma viagem ao Oriente, nenhum navio de luxo, nenhum veneno exótico escondido em caixas de madrepérola ou em Budas de jade.
Avesso a todo orientalismo, a toda "chinoiserie", o belga Georges Simenon está nos antípodas de seu outro compatriota famoso, Hergé, o criador de Tintim.
Para este, o mal e o bem da vida estavam em lugares distantes -os desertos da África, as selvas da Amazônia, as crateras da Lua. Para Simenon, o mal está muito perto, está na casa do vizinho, e o bem talvez não esteja em lugar nenhum.
Maigret é um detetive raro em histórias policiais, por vários motivos.
Em primeiro lugar, ele não é "detetive particular": tem posto e escrivaninha na polícia de Paris. Não é nem o renegado, o injustiçado romântico das histórias norte-americanas (Raymond Chandler, Dashiell Hammet), nem o gênio amador, o diletante espantoso de Agatha Christie ou Conan Doyle (Miss Marple, Sherlock Holmes). É um sujeito banal.
Não é meu personagem preferido. É incapaz daquelas deduções maravilhosas, euclidianas, de Poirot. Age por instinto. Na maior parte do tempo, está tão desorientado quanto nós mesmos. Só que, sabe-se lá como, escolheu um caminho para suas investigações que termina dando certo.
É capaz dos interrogatórios mais vazios. Pergunta ao possível assassino se ele gosta de doces ou de bridge.
Nas mãos de Poirot ou de Sherlock Holmes, a resposta seria elucidativa, importantíssima. Nas histórias de Maigret, a resposta é tão idiota quanto a pergunta e costuma não levar a nada. Detalhes são apenas detalhes.
Como na vida cotidiana, não é necessário a Maigret, ou a Simenon, que absolutamente tudo faça sentido. Este é o grande feito artístico das suas histórias e o que há nelas de mais frustrante para mim.
Em vez de uma mágica "significatividade" das coisas, de uma incansável produção de sentidos e razões, de pistas e de indícios em cada crime -quem leu Ellery Queen ou Jorge Luís Borges conhece o mecanismo, a máquina miraculosa de contos misteriosos perfeitamente resolvidos-, temos aqui um estado "assemiótico", estranhamente esvaziado de intenções e de sintomas, pobre de pistas, real.
Encantam-me seus acessos de cólera, seus momentos de bom humor, suas respostas atravessadas, seus momentos de galanteio.
O ator Bruno Cremer encarna Maigret otimamente: grandalhão, pesado, seus dentes pequenos se mostram hostis, de rato, quando sorri, e fortes, largos, quando explode de raiva.
Os olhos azuis são penetrantes, mas se cobrem, não raro, de cansaço. O porte assombroso de Maigret se faz diminuto no escuro, nas calçadas frias ao longo de um cais ou de uma mansão silenciosa.
No final, claro, tudo se esclarece. Mas não sabemos bem como Maigret chegou a suas conclusões.
Há sempre um escândalo de família por muito tempo abafado, uma compostura burguesa que se destrói, um incesto, uma herança, uma cumplicidade entre parentes.
É que, para Simenon, a família burguesa é o grande viveiro dos crimes hediondos. André Gide, que se não me engano admirava Simenon, lançou há muito tempo uma grande apóstrofe, hoje em dia esquecida: "Famílias, eu vos odeio!".
Maigret não tem filhos. Mas a todo momento recebe telefonemas de sua mulher. Sustenta, ao que parece, um casamento harmonioso, em contraponto aos horrores que descobre nos lares mais bem-comportados. É a homenagem que a virtude faz ao vício.
Vício que inclui assistir Maigret todos os domingos, como num assegurar-se da própria rotina, deliciosa rotina domigueira, enquanto ao longe, incansáveis, as risadas de Silvio Santos e as proezas do "Fantástico" tentam, inutilmente, fazer as pessoas se esquecerem da própria vida.

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