São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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Algumas verdades

JANIO DE FREITAS

Nunca houve, na história republicana brasileira, o caso de um presidente que buscasse tão radical e desesperadamente a aprovação de um projeto quanto o faz Fernando Henrique Cardoso pelo projeto que lhe permita reeleger-se.
Nem registra a história política brasileira o caso de algum projeto pelo qual um presidente se dispusesse a estagnar o seu próprio governo por mais de um ano. No espaço, na energia e no tempo que tal pretensão está consumindo, não só da administração e do também inerte Congresso, mas do país mesmo, são mantidas abaixo da superfície visível algumas verdades no entanto fundamentais.
Em nenhum discurso, em nenhuma entrevista, em nenhum documento, em nenhum item do seu programa de candidato, Fernando Henrique Cardoso mencionou, sugeriu ou ao menos insinuou o que quer que fosse a respeito de reeleição. Nem sequer em tese.
Da mesma maneira, as bases da aliança partidária que o apoiou e, depois, da aliança maior que fez as bancadas governistas no Senado e na Câmara, então incorporando o PMDB, a reeleição não foi incluída nem sugerida no programa de reformas constitucionais proposto por Fernando Henrique e que a aliança se comprometia a aprovar.
De lá para cá, em momento algum o PMDB assumiu compromisso com a reeleição. E não só porque o compromisso jamais lhe foi pedido ou proposto pelo interessado, mas até pela existência de um inconveniente explícito. Como Fernando Henrique tem, porque não poderia deixar de ter, plena consciência das implicações morais do seu projeto de reeleição, passou ao PFL o papel de (aparente) responsável pelo projeto. Até as recentes complicações, Fernando Henrique representava o papel ético, tanto para o público como para os políticos não pefelistas, com frases como "reeleição é com o Congresso", "eu não trato de reeleição, isso não é com o presidente", "cada um que vote a reeleição como quiser, esse não é um projeto do governo, é do Congresso". Os que de fato podem falar pelo PMDB jamais engrossariam um "projeto do PFL".
Diante desses fatos comprováveis na coleção de qualquer jornal, acusar as lideranças do PMDB de traição, pelos motivos de Fernando Henrique para fazê-lo, é mais do que o desvario de uma pretensão incontrolável. Às vezes até com sabujice, como se deu quando o deputado Michel Temer designou-se relator substituto da emenda da Previdência, e em outras com traição ao seu programa e aos seus princípios tradicionais, o PMDB não faltou nem uma vez com o apoio (quase sempre o fator decisivo) aos interesses do governo no Congresso. Inclusive para sustar CPIs que poderiam expor o lado negro do governo.
Muito mais, porém, do que o bafafá no qual o PMDB paga por suas complacências e conivências tão exageradas (Fernando Henrique deve ao PMDB o fato de governar por medida provisória), importa o que a obsessão posta na reeleição tem acarretado para o país.
Instaurada a desordem no serviço público, com efeitos muito graves em setores relevantes como o ensino universitário e a saúde pública, a tal reforma administrativa está imobilizada no Congresso para que não dificulte votos pela reeleição. A reforma tributária está na mesma prateleira. Nela, também, a reforma fiscal. O monopólio do petróleo foi quebrado há dois anos quase -para nada. O governo não podia providenciar o projeto de regulamentação, porque, nele, a situação da Petrobrás suscitaria divergências inconvenientes à votação da reeleição. Há quatro dias, o deputado governista Eliseu Resende mostrava o seu relatório para a regulamentação, mas informava não poder apresentá-lo ainda por causa da reeleição. Por causa da reeleição, o Proer, que se extinguiria em dezembro depois dos quase R$ 15 bilhões para salvar bancos e banqueiros, foi prorrogado: o senador Andrade Vieira é o manda-chuva do PTB e dono do Bamerindus que atravessa espinhosas dificuldades, solucionáveis pelos bilhões do Proer. Nas telecomunicações nada mudou até agora -a não ser a evidência de um esquema para vender concessões de rádio.
Aí estão apenas exemplos em número mínimo. Na verdade, já no segundo semestre de 95 o governo começava a se condicionar à reeleição. Em 96, tudo foi condicionado a esse projeto, e como não foi possível votá-lo no meio do ano, segundo o plano (público, sim) de Fernando Henrique-Sérgio Motta-Luís Eduardo Magalhães, nem foi possível votá-lo na alternativa do segundo mestre, tudo em 96 ficou estagnado para não dividir os votos desejados para a reeleição.
Mas a reeleição não é uma das urgências deste país de urgências incontáveis. A reeleição não é uma necessidade entre tantas necessidades tão aberrantes, tão socialmente violentas, tão desumanamente criminosas. A reeleição não é sequer uma aspiração inútil do país, como uma qualquer vitória numa das frequentes peladas internacionais. Neste país de necessidades e urgências, o tempo perdido por causa de uma ambição individual não é perdido: é tempo usurpado, na mais clamorosa usurpação. Este não-uso do tempo e dos meios de governar é, ele sim, traição. Às imensas possibilidades do fazer, ao povo e ao país.

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