São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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Cláudia Liz e a ética médica

LUÍS NASSIF
DO CONSELHO EDITORIAL

Quando a modelo Cláudia Liz acordou intacta, depois de alguns dias de coma, a mídia tinha presenteado o show bizz com mais um conto de fadas completo com final feliz.
No elenco, como vilão, o anestesista Francisco Minan Neto, humilde, formado na distante Universidade da Paraíba; como castelo da bruxa, a Clínica Santé; e, como príncipe encantando, o neurocirurgião José Roberto Pagura, falante, formação internacional.
Foram dias de um show inesquecível. A bela chega quase morta ao hospital. Lá, o neurocirurgião Pagura diagnostica coma profundo e despeja prognósticos assustadores: não poderia assegurar sequer que saísse com vida.
Se sobrevivesse, haveria sequelas, de cegueira até uma vida vegetativa. Alguns dias depois, dá-se o milagre.
Contrariando todos os prognósticos (do dr. Pagura), a bela acorda provisoriamente um pouco menos bela, posto que levemente inchada por medicamentos, mas feliz e de volta ao convívio da família, do marido apaixonado e de sua legião de fãs.
Tema médico
Baixada a espuma, a maior parte dos especialistas concorda:
1) O comportamento do anestesista foi irrepreensível. Acudiu a paciente em tempo, tomou todas as providências necessárias. Depois, saiu de cena, tão discretamente quanto permaneceu, apesar de ter sido massacrado impiedosamente pela mídia.
2) A clínica é bem equipada, forneceu toda a infra-estrutura que permitiu a recuperação da modelo e comportou-se de maneira ética -não dando curso a suposições sobre as causas do choque, que, para livrar sua imagem, pudessem de alguma maneira comprometer os princípios de sigilo médico.
3) Pagura não resistiu aos holofotes e permitiu que se passasse à opinião pública um quadro falsamente dramático sobre a situação da modelo, criando clima propício ao linchamento de seus colegas da Santé.
4) O comportamento da maior parte da mídia foi superficial e sensacionalista, aceitando acriticamente as avaliações de Pagura.
Opinião de especialistas
Se, na ocasião, tivessem sido consultados outros especialistas do setor, saber-se-ia que na isquemia cerebral o que define o prognóstico é o que é feito nos primeiros minutos. Passado esse período inicial, não há nada mais a fazer.
Se não houve sequelas, é porque o atendimento inicial foi perfeito.
Além disso -dizem eles-, não havia nenhuma evidência de que Liz estava em coma profundo ao chegar ao Einstein. Tanto que reagiu ao beliscão que lhe foi aplicado no braço por Pagura.
Os exames de tomografia e ressonância magnética realizados não apontaram nenhuma lesão no cérebro. O único exame que apresentou dúvidas foi um eletroencefalograma. Mas seu valor era questionável devido ao fato da moça estar pesadamente sedada.
Um especialista consultado pela coluna foi taxativo: "Nunca vi na vida alguém estar num coma preocupante e levantar três dias depois. Na saída do coma, há uma sequência de etapas que a pessoa atravessa. Se estivesse entrado em coma profundo, não podia ter despertado de uma hora para outra. A notícia foi motivo de riso em todos os meios neurológicos".
Ética médica
O episódio certamente se constituirá em divisor de águas na definição da ética médica. E seria profundamente saudável se permitisse à imprensa reavaliar suas relações com as fontes e a maneira de abordar temas técnicos.
Nos últimos anos, está acontecendo com a medicina -e com a odontologia- processo semelhante ao que ocorreu com advogados e economistas: por meio de esquemas de assessoria de imprensa, médicos valem-se do pouco conhecimento técnico da mídia para se "venderem" ao público leigo.
Cria-se mistura explosiva de interesses da mídia por sensacionalismo, e desses profissionais por notoriedade.
"Tenho 54 médicos", diz um diretor de hospital conceituado de São Paulo.
"Tive residentes que, antes de ter consultório, tinham assessoria de imprensa."
Desvirtua-se o conceito de reputação médica, e ludibria-se a boa fé dos consumidores. Antes as reputações médicas eram forjadas junto aos demais médicos.
Para angariar respeito da comunidade médica, médico não deveria se expor à mídia, em shows inconsequentes.
Assim, as reputações eram construídas lentamente, porém com segurança.
Poucos conhecem o professor Sérgio Oliveira. Há mais de 15 anos é o mais renomado especialista em operações de ponte de safena.
O renome foi testado junto aos próprios colegas, porque provavelmente jamais deu uma entrevista na vida.
Hoje um repórter, sem conhecimento técnico, que avalia informações médicas apenas dentro do conceito jornalístico -o que é ou não é notícia- pode ser manipulado, e se transformar em instrumento de consagração ou de liquidação de reputações.
Corporativismo médico
Segundo notícias da Folha, responsável pela investigação do caso pelo Conselho Regional de Medicina (CRM), o neurologista Célio Levyman, considerou normal o comportamento de Pagura.
"O melhor é ser uma espécie de 'pessimista dialético': se o paciente piora, você já tem uma estrutura clínica e o espírito preparado. Se melhora, o estado do paciente, você fica duas vezes mais feliz."
Sugere-se que o CRM submeta seu analista de ética a um conselho de ética, para ver se salva sua própria reputação das acusações de corporativismo inconsequente.

Email: lnassif@uol.com.br

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