São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sociedades com fins lucrativos

FAREED ZAKARIA
ESPECIAL PARA "NYT BOOK REVIEW"

Em 1989, com o comunismo tremendo nas bases, Francis Fukuyama escreveu um ensaio, hoje legendário, com o extravagante título "O Fim da História". Nele, argumentava que a tendência global no sentido da democracia e do capitalismo havia colocado um ponto final no secular debate em torno da forma ideal de governo. Agora, o senhor Fukuyama deslocou seu foco do Estado para a sociedade, e o resultado disso é um livro a um tempo só fascinante e frustrante: "Confiança: as Virtudes Sociais e a Criação da Prosperidade".
Nós nos estabelecemos sobre a estrutura do Estado, escreve ele, mas "a vitalidade das instituições políticas e econômicas de orientação liberal depende de uma sociedade civil saudável e dinâmica".
Ao conceito de sociedade civil são centrais as "instituições intermediárias", grupos privados que prosperam entre o reino do Estado e a família. Durante sua curta estada nos Estados Unidos, Alexis de Tocqueville teceu um comentário famoso sobre a profusão desse tipo de associação no país -instituições de caridade, grupos corais, grupos de estudo reunidos nas igrejas, clubes de livros- e observou que seu efeito sobre a sociedade, marcadamente salutar, seria o de transformar indivíduos egoístas em cidadãos imbuídos de espírito público.
Fukuyama, cientista social e ex-analista do Departamento de Estado, dá um passo adiante no argumento de Tocqueville. A arte da associação não é positiva somente na política, afirma ele, mas também na economia: a associação inculca, com facilidade, o hábito do trabalho em equipe e, portanto, aumenta a produtividade; também torna desnecessários as normas rígidas e os contratos jurídicos complexos. Em resumo, ameniza os atritos do capitalismo. Desde Tocqueville, temos partido do princípio de que os Rotary Clubs contribuem para a democracia; Fukuyama nos diz que eles também são benéficos ao capitalismo.
A habilidade para formar modelos de grupo que se revelarão positivos, argumenta ele, depende basicamente da confiança. Se uma sociedade tem em si a cultura da confiança, e particularmente se seus membros têm a capacidade de confiar em pessoas externas ao seu grupo familiar, consegue gerar "capital social", o que é tão útil para o capital financeiro quanto para o bem-estar econômico.
Em "Confiança", Fukuyama escreveu dois livros em um. O primeiro apóia-se no argumento, ao qual recorre ao longo das 457 páginas do volume, a favor das virtudes da confiança, do capital social e dos grupos intermediários. O segundo, que compõe a maior parte do livro, contém estudos de caso de três países "com alta dose de confiança" -a Alemanha, o Japão e os Estados Unidos- e três países "com baixa dose de confiança" -a França, a Itália e a China. Em uma discussão inteligente e complexa, ele explica a maneira como a confiança e a cultura afetaram a vida política e econômica desses seis países.
A principal afirmação de Fukuyama é que a força da sociedade civil afeta severamente a estrutura industrial das sociedades. Longe de constituir três formas diversas de capitalismo, as economias americana, japonesa e alemã, diz ele, são notavelmente semelhantes entre si. As três são dominadas por corporações de grande porte, privadas e com gerenciamento profissional, como a General Electric, a Toyota Motor Corporation e a Siemens. A França, a Itália e a China, por sua vez, têm muitas companhias familiares de pequeno porte e algumas poucas megaempresas estatais ou subsidiadas pelo Estado, como a Renault e os grandes bancos italianos.
Fukuyama argumenta persuasivamente que essa diferença na estrutura industrial origina-se de diferenças no nível de confiança no interior dessas sociedades. Na França, na Itália e na China, as pessoas mostram-se muito pouco capazes de confiar em alguém que não pertença à sua própria família e formam poucas organizações intermediárias. Em contraste, os EUA, o Japão e a Alemanha são sociedades associativas, repletas de organizações que reúnem grupos de pessoas que não se conhecem das mais variadas formas.
A correlação entre confiança e estrutura industrial é intocável. Mas será realmente importante? Fukuyama admite que as grandes corporações profissionais não são necessariamente mais positivas para o crescimento ou a produtividade de uma nação. (Os três países industrializados com maior ritmo de crescimento no pós-guerra foram o Japão, a França e a Itália -um deles "com alta dose de confiança" e dois "com baixa dose de confiança".)
Na verdade, alguns economistas defendem a teoria de que, na era pós-industrial, as pequenas empresas apóiam-se na flexibilidade para superar seus concorrentes maiores e morosos em função do gigantismo. Os pequenos negócios são responsáveis pela maior parte dos empregos gerados pela indústria nas duas últimas décadas. No fim, Fukuyama volta-se para uma prescrição que abarca o melhor dos dois mundos: a economia ideal, diz ele, contaria com pequenas empresas associadas entre si, que, assim, ganhariam flexibilidade e porte. Mas não está clara a razão pela qual sociedades com alta dose de confiança se beneficiariam da criação desses acordos.
Mesmo Tocqueville, porém, pode ter errado -não em sua observação empírica de que as instituições intermediárias fortalecem o sistema de governo americano, mas na generalização de que tais instituições são a chave para a democracia.
O Oriente Médio, para tomar outro exemplo, experimenta atualmente um renascimento das instituições intermediárias, mas os grupos de cidadãos que estão se formando lá são com frequência intolerantes, extremistas do ponto de vista político e religioso, pregadores da violência e do terror. É difícil acreditar que a emergência de mais grupos desse tipo conduzirá a uma democracia genuína.
Acabamos pensando na sociedade civil como um grande conjunto de Rotary Clubs, filiais da Cruz Vermelha e grupos de assistentes sociais.
No campo econômico, alguns grupos privados podem realmente prejudicar o crescimento. O senhor Fukuyama está bem consciente de que, historicamente, "produtores medievais, seguindo as doutrinas econômicas da Igreja Católica", da mesma forma que alguns sindicatos e pequenos grupos corporativistas, criaram o impasse e a paralisia do capitalismo.
É revelador que ele afirme que o capital social "provavelmente será útil do ponto de vista econômico somente se for utilizado de modo a construir organizações econômicas capazes de gerar riqueza". Exatamente. Aprovamos as instituições intermediárias quando surtem efeitos positivos e as reprovamos quando suas consequências são negativas. O que queremos, parece, não é a sociedade civil, mas o civismo -o que os romanos chamavam de "civitas", ou seja, espírito público, capacidade de sacrifício em nome da comunidade, cidadania, nobreza mesmo. Mas nem toda sociedade civil tem mentalidade cívica.
No começo de 1994, o cientista social Robert Putnam, em um criterioso estudo, argumentou que o capital social americano está diminuindo perigosamente -o volume de associações aos Rotary Clubs e aos escoteiros-mirins está em queda. Emblemático do problema, segundo ele, é o fato de, apesar de um número maior de americanos estar jogando boliche, um número menor está praticando o esporte em ligas ou grupos. Com o impressionante título de "Bowling Alone" (Boliche Solitário), o estudo conquistou o aplauso geral, de George Will ao presidente Bill Clinton.
Menos notado foi um artigo publicado, meses depois, no "The New York Times" a respeito de Thimothy J. McVeigh, acusado de ter depositado uma bomba em um prédio do governo federal, em Oklahoma City. Nela, constata-se que o senhor McVeigh e seus amigos, Terry e James Nichols, compareciam a um clube de boliche com certa frequência. O grupo parecia exercer todas as funções de uma boa instituição intermediária, estabelecendo um senso de comunidade, estimulando a camaradagem e facilitando o planejamento de projetos coletivos. Mas talvez todos nós estivéssemos muito melhor se o senhor McVeigh tivesse optado pelo boliche solitário.

Tradução de Tânia Marques.

Texto Anterior: NOTAS AOS POEMAS
Próximo Texto: Contradições de um ressentido
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.