São Paulo, domingo, 19 de janeiro de 1997
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Série reduz homem a um mero animal

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

As duas concorrentes de TV paga em operação no país, NET/Multicanal e TVA, colocaram recentemente no ar dois documentários, ou melhor, duas versões semelhantes de um mesmo documentário cujo tema é o comportamento humano nas grandes cidades visto a partir de uma ótica à primeira vista inusitada: nos dois casos, as pessoas não são tratadas como tais, mas capturadas na condição de bichos, exatamente como fazem aqueles programas clássicos sobre o "mundo animal" quando nos mostram a rotina de insetos e dos leões na selva africana.
Assim como os programas se confundem (ambos se chamam "Selva de Vidro" e a diferença aparece apenas nos subtítulos -"A Vida no Limite", no caso do Discovery Channel (TVA e Net/Multicanal), e "Invasores do Espaço", no GNT, exclusivo da NET/Multicanal-, suas ferramentas metodológicas também são indefinidas, ficam a meio caminho entre a psicologia comportamental mais rasa e as conquistas recentes das ciências biológicas. O Homo sapiens é assim reduzido a uma espécie de rato de laboratório, mas cujo comportamento pode e deve ser explicado através de uma cadeia de processos químicos identificáveis.
Os programas são ao mesmo tempo testemunhas e sintomas de uma tendência irresistível da ciência da nossa época: considerar o ser humano como um animal, varrendo para o lixo todas as mediações simbólicas da cultura (linguagem, trabalho etc.) nas quais se fundamentaram um dia aquilo que ainda chamamos (mas por quanto tempo?) de ciências humanas.
Prevalece, nos dois casos, a idéia básica de que há uma gramática biológica, pré-cultural, que detém a chave para explicar as ações humanas mais corriqueiras.
Essa investida da biologia sobre a cultura não deixa de ter sua graça. Um dos programas nos explica, por exemplo, que o ser humano cria em torno de si uma "bolha invisível", evitando ao máximo que qualquer estranho aproxime-se dele a uma distância inferior a 45 centímetros. Isso pode ocorrer num banco de praça, dentro de um ônibus, no metrô, numa sala de cinema. As pessoas costumam sentar-se longe umas das outras; quando são obrigadas a ficar lado a lado, então passam a disputar o encosto de braço dos assentos numa guerra tácita de cotovelos.
Outra passagem instrutiva mostra as pessoas dentro de seus carros, descritos como uma conquista da individualidade, "bolhas invisíveis" que se materializaram. "Dentro do meu carro sinto-me protegida, o carro é minha fortaleza", explica uma das entrevistadas.
A seguir, uma sequência flagra os motoristas agindo dentro de seus carros como se estivessem sozinhos, trancados no banheiro: olham-se no espelho, enfiam o dedo no nariz, cospem no chão etc.
Ao "naturalizar" as ações humanas, ao animalizar o Homo sapiens, esses programas funcionam como complemento a outra tendência dos dias atuais: a humanização dos animais.
Que se tome apenas o exemplo imbatível da propaganda da Parmalat, onde crianças fantasiadas transformam filhotes de leões e rinocerontes em bebês fofinhos, criaturas que temos vontade de apertar e trocar as fraldas.
Diante do sucesso estrondoso da peça publicitária, podemos desconfiar que há uma razão profunda nessa troca de papéis: no atual estágio da sociedade de massas, as pessoas são cada vez mais como os animais, reagem mecanicamente, na base do estímulo e resposta. Invertemos enfim o darwinismo: o macaco não é mais o nosso antepassado; é a forma avançada e a verdade do velho Homo sapiens.

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