São Paulo, segunda-feira, 20 de janeiro de 1997 |
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Welles implode o cinema clássico em 'Soberba'
ALCINO LEITE NETO
Querem ver, falar, fazer cinema? Voltem a "Soberba" (agora em vídeo no Brasil), seguindo o conselho irônico de Truffaut: se Flaubert relia "Don Quixote" anualmente, por que não podemos rever "Soberba" todo ano? Ao espectador de hoje, no entanto, "Soberba" talvez cause menos impacto que "Kane". Não tem a pirotecnia formal deste, não se beneficia de um personagem tão fascinante e atual, o caleidoscópio cenarístico urbano dá lugar a um cenário provinciano obsessivo (a mansão dos Ambersons) e o filme desenvolve-se por complexas camadas sobrepostas, mais que por fragmentos. Além disso, "Soberba" é o único filme de Welles a não contar no elenco com a presença magnética do próprio diretor e ator. Welles se restringiu a empregar sua voz como condutora da história e apresentadora dos créditos no final memorável. É essa voz que vai orientar a narrativa e ajustar o filme à pretendida forma romanesca (Sadoul disse: balzaquiana). É uma "voz-escrita", distante do registro teatral, radiofônico e polifônico de "Kane". No entanto, reaparece aqui em arranjo mais sintético e rigoroso o jogo barroquista entre alto-baixo, frente-fundo, gigantismo-pequenez, por meio da profundidade de campo e do plano-sequência, que permitem a Welles chegar ao nervo do tempo, da duração. E reaparecem os temas de "Kane", em outro diapasão: o contraste entre potência e impotência, o mundo que se quer e o que aí está, a intempestividade e a frustração, o paraíso e a queda. Assim como Charles Kane é arrancado de súbito da infância, em "Soberba" os Ambersons, família aristocrática do interior dos Estados Unidos, são progressivamente expulsos pela modernização (simbolizada pelo automóvel) do universo idílico em que vivem. A história executa a família, levando seus membros a se debaterem num tortuoso labirinto psicológico que, afinal, vai revelar o lugar nenhum a que estão destinados, a vacuidade de sua existência. Charles Kane era, ele mesmo, um agente da modernização, e ela não tardaria a reverter seu veneno contra o desmesurado projeto de modelagem da vida pelo magnata. Os Ambersons não são agentes, só vítimas -e o "inevitável" que "destrói tudo" (conforme a fábula do filme) espalha-se meticulosamente entre os personagens todos. Em "Kane", a destruição de um sujeito. Em "Soberba", a ruína de um núcleo social inteiro. Esse aparente pessimismo e o distanciamento com que Welles tratou a queda dos Ambersons irritaram o público que assistiu à sessão-teste do filme. A produtora RKO resolveu, então, cortar e retocar o filme, cumprindo uma das mais trágicas destruições da história do cinema. Para seu desespero, Welles estava no Brasil filmando "É Tudo Verdade" quando as mudanças foram feitas. Só reviu o filme anos depois, em Paris, por insistência do escritor André Gide. Não existe cópia da versão original e é surpreendente (ou é um sintoma) que "Soberba" permaneça uma obra-prima do cinema. Filme: Soberba (The Magnificent Ambersons) Produção: EUA, 1942, 88 min Direção: Orson Welles Com: Tim Holt, Agnes Moorehead Lançamento: Wonder Multimídia (tel. 011/287-2696) Texto Anterior: MIS faz leitura hoje Próximo Texto: Saiba como o filme terminava na versão original Índice |
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