São Paulo, segunda-feira, 20 de janeiro de 1997
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Brasília vive a crise do espetáculo político

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Brasília vive um daqueles momentos que um jornalista chamou de wagnerianos. Sente-se no ar que alguma coisa vai acontecer e que ela, de uma certa maneira, marcará nosso futuro. Foi assim na campanha das diretas, no impeachment de Collor, na morte de Tancredo.
A cidade fica muito melhor porque vem mais gente. Jornalistas, curiosos, governadores, o circo se arma e passamos todos a viver como se nossa vida tivesse algum sentido político e como se estivéssemos à beira de uma grande decisão pessoal.
Algumas coisas não mudam. Os motoristas de táxi sempre reclamam que o movimento foi menor do que esperavam. E os operadores de som que sentam diante dos equipamentos de TV no Salão Verde revelam às vezes uma enigmática tristeza no intervalo das gravações.
Parecem ter perdido o interesse pela história e só esperam que alguém indique onde iluminar para que examinem o rosto do vencedor com uma saudável indiferença técnica.
Os iluminadores me ajudam a olhar com uma certa apreensão este momento de Brasília. Comparado com o clima das diretas, não há grandes emoções no ar, sequer o general Newton Cruz com suas evoluções militares pela cidade.
O espetáculo da democracia representativa parece em crise. Vai continuar sua função de rotina, mas já se vêem alguns rombos na lona do circo.
Na porta, a segurança é redobrada. Contra quem? Um perigoso estudante vestido de rei conseguiu entrar na sala onde se encenava o drama e foi retirado pelos guardas. Ninguém agradeceu seu trabalho de coadjuvante, energia em se fantasiar e sua esperança de realizar a história do menino que disse que o rei estava nu.
O diabo de todos os espetáculos é que precisam de uma espécie de suspensão de credulidade, como precisam as histórias da ficção. O espectador tem de tomar aquilo como real, para mergulhar nas emoções de trama.
A democracia representativa está ferida de morte ou é apenas uma crise? Cientistas europeus fizeram uma pesquisa transnacional sobre o tema e constataram que o fim da democracia representativa não está no horizonte. Mas dedicaram um volume de quase 600 páginas, entre os seis livros que publicaram sobre o tema, para examinar os impactos dos novos valores.
Este problema já vinha sendo muito discutido desde o início dos 70. A vantagem do trabalho patrocinado pela Academia de Ciência Européia é que levanta a tese da possibilidade de uma crise e procura confrontá-la com uma ampla pesquisa empírica.
Ao mesmo tempo em que novos valores se formavam, uma grande base técnica coloca à disposição das pessoas um volume de informações jamais visto. Tudo isto aumenta as possibilidades da democracia direta que ao invés de limitar os políticos vai fortalecer seu trabalho.
É um momento delicado pois se a política convencional resistir à democratização da democracia, pode se tornar uma província da atividade humana onde nada acontece. Ela passa apenas a legitimar conquistas já alcançadas na prática por alguns setores da sociedade.
Mais próximo das minhas atividades, no estudo do cânhamo, é impressionante como o mercado se move mais rápido que os políticos. Um empresário norte-americano me descreveu como os compradores da fibra já chegaram à China e já tomam cerveja com os chineses dentro das fábricas.
O resultado disto é que os norte-americanos passaram a ser os principais revendedores da fibra chinesa para o mundo, enquanto o governo Clinton continua aconselhando seus aliados a não plantarem. Aparentemente seria uma jogada maquiavélica. Mas não é.
Clinton é contra a plantação nos Estados Unidos, mas já começa a ser derrotado na prática pois os estados começam a permitir a plantação, sobretudo em áreas decadentes da economia agrícola.
Quando Brasília se prepara para os seus momentos wagnerianos, tenho às vezes uma crise vocacional. Será que as coisas estão se movendo por aqui, será que realmente pode sair uma verdadeira ponte com o século 21?
Sei que daqui o clima será intenso e sabendo que estou no barco talvez abandone os pesados livros dos cientistas políticos europeus. Nesse momento, minha única saída é remar.

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