São Paulo, quarta-feira, 22 de janeiro de 1997
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A luta pela reeleição é a 1ª campanha real de FHC

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O que mais me espantou até agora no caso da reeleição é o outdoor que andaram espalhando pelas ruas, com uma mão pintada de verde e amarelo, fazendo o V da vitória (ou o número 2 dos mandatos pretendidos, não sei). E em cima há a frase: "Eu Quero".
Esse "eu", em propaganda, significa em geral um sujeito indiferenciado, uma espécie de "nós" oculto. Por exemplo, em "Eu também gosto de danoninho", ou "Eu prefiro Volkswagen", esse "eu" (o consumidor comum, a modelo deslumbrante, o atleta consagrado) parece dizer: "Eu, logo, você também", ou seja, "Nós todos". De modo que, no outdoor da reeleição, o "eu" deveria em tese estar representando a "voz rouca das ruas" a que se referiu Fernando Henrique.
Curiosa expressão, aliás, essa da "voz rouca". Provavelmente o adjetivo "rouca" substituiu, no improviso presidencial, algum outro mais verdadeiro, como, por exemplo, "surda", "abafada", "inaudível" -pois ninguém andava rouco de tanto pedir a reeleição. Dizer "voz abafada" faria sentido, à medida que é provável que muitos eleitores queiram de fato reeleger FHC, sem ter expressado esse desejo.
Mas no cartaz da reeleição o "Eu quero" pode ter outra leitura. Quem diz "Eu quero" seria ele mesmo, o presidente Fernando Henrique. Quero porque quero. E pronto. O pressuposto da identidade entre quem fala e quem vê o cartaz se rompe, assim, num gesto imperial.
E Fernando Henrique de fato deixou de se mostrar hipocritamente neutro com relação ao tema, assumindo enfim sua postulação pessoal. A mudança de atitude foi notada, com a vigilância cívica de sempre, pela coluna de Janio de Freitas de domingo passado.
O tom imperioso de FHC, o "Eu quero" do cartaz correspondem a uma alteração psicológica e política bem interessante.
No fundo, FHC parecia um inapetente pelo poder. Recebeu seu mandato de mão beijada, a eleição foi facílima, ele sempre se comportou com superioridade diante dos políticos comuns. Foi sempre um príncipe herdeiro. Do quê? Da esquerda, da social-democracia, da modernidade, da razão? De Ulysses, de Itamar?
Não sei. Mas FHC não tinha nada daquela coisa de imigrante sôfrego e arrivista, que para muitos ainda vincula Maluf a sua origem familiar. E nada daquela imobilidade patriarcal de Sarney, querendo um ano a mais de mandato para si ou um século a mais de poder para a sua família.
Fazia até questão de não se "sujar" no processo eleitoral, e o episódio da buchada de bode foi uma espécie de triunfo simbólico da plebe -come, desgraçado! Quer ser presidente, então come!
Mas, em certo sentido, a luta pela reeleição é a primeira campanha real de FHC. Agora a política está sendo feita sem sorrisos e frases em francês. Agora é do poder mesmo que se trata, não de Max Weber e dos "desafios da globalização". Fernando Henrique ficou tão feio quanto as caricaturas que, com visão profética, Angeli há muito tempo ia fazendo dele.
Choca-me bastante a deselegância do processo, mas confesso que não vejo nada de antinatural ou de visceralmente errado na reeleição. É decisivo para mim o argumento de que, afinal, FHC pode perder no próximo pleito.
Seria a reeleição um casuísmo? Mas os famosos casuísmos do regime militar tinham outro sentido. Voltavam-se para impedir, com regras sempre renovadas, a vitória eleitoral da oposição. Aqui, nada impede a vitória da oposição na próxima disputa presidencial, exceto...
Exceto a popularidade e as virtudes pessoais de FHC; de modo que, não querer que ele postule a reeleição, é, no fundo, uma homenagem a seu prestígio, às qualidades de seu governo.
Parece-me mais perverso e antidemocrático o estado atual, quando um governante precisa e quer eleger "seu sucessor". A população quer reeleger Maluf e acaba votando em Pitta sem conhecê-lo. E muita gente gostaria de ter reeleito Juscelino Kubitschek em 1960, e não conseguiu votar no marechal Lott, candidato do seu partido.
Resta a questão, sempre escandalosa, da compra de votos no Congresso para garantir a emenda da reeleição. Parece-me estar em jogo um processo bem complicado no arranjo fisiológico. Quando um deputado vincula seu apoio à liberação de verbas para um hospital ou uma estrada, também está usando seu poder de pressão para que o Executivo faça aquilo que não quer fazer em circunstâncias normais.
Estamos num quadro em que, para dar seguimento a um processo de desmonte do Estado, via reeleição, o Congresso termina exigindo que o Estado atue um pouco mais. O paradoxo pode ser estendido: na realidade, o Executivo se tornou o poder legislador (emendas provisórias) e o Legislativo é que, caótica e fisiologicamente, toma decisões de Executivo (estradas ali, postos de saúde lá, uma usina acolá).
Esse esquema de interpretação não diz muito a favor da racionalidade do processo todo. Mas tem sido assim, na verdade, que as resistências a um neoliberalismo integral, a um thatcherianismo extremo, têm se articulado na prática. A aliança entre Lula, Sarney, Miguel Arraes, Maluf e Paes de Andrade não é espantosa nesse ponto de vista e nada tem a dever, diga-se, à aliança da "modernidade" peessedebista com ACM e congêneres.
Uma última observação, inspirada no artigo de José Luiz Fiori no "Mais!" deste domingo. Não só o continuísmo tem sido praxe nos governos neoliberais -Kohl no poder por mais de dez anos na Alemanha- como também as oposições terminam fazendo o que criticavam. Vide Mitterrand e Felipe Gonzalez. Mas, além disso, parece ser coerente com a "globalização" um processo de enfraquecimento do Legislativo, do qual a reeleição de FHC também faz parte.
O "autogolpe" de Fujimori teve o sentido de vencer um Congresso irredutível às mudanças econômicas e políticas impostas pela nova ordem. Se cada país tem o Fujimori que merece, não nos saímos tão mal da comparação. Não que seja alguma maravilha. Mas a reeleição tampouco é ameaça ou alteração relevante na conjuntura; sacraliza-a, sem dúvida, numa via "personalista", mas esta parece ser a regra atualmente.

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