São Paulo, segunda-feira, 27 de janeiro de 1997
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Repentistas movem indústria cultural "subterrânea"

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

O repente nordestino está completando 50 anos de São Paulo. Quando chegou, a cidade lhe torceu o nariz. Os cantadores de viola sofriam discriminações dos imigrantes europeus e dos paulistanos da gema. Volta e meia, amargavam rusgas com a polícia.
Hoje, embora apareçam pouco na mídia, conseguem viver em paz e ganhar dinheiro.
Muitos nem têm outra profissão -tiram o sustento apenas das cantorias. Embolsam, em média, R$ 2.000 por mês. Nas épocas de fartura, a renda pode subir para R$ 5.000.
E não é só o povão que os alimenta. Os repentistas se exibem em churrascarias e bares dos subúrbios, mas também em festas da alta classe média.
Com as rimas de improviso, movimentam uma indústria cultural "subterrânea", que ainda oferece discos de vinil.
Lenda
O primeiro violeiro que trocou o Nordeste por São Paulo se chama Augusto Pereira da Silva -ou Guriatã de Coqueiro.
Nasceu em Santana do Ipanema (AL) e chegou à capital paulista no dia 10 de dezembro de 1946. Cantava desde os 13 anos, à maneira chorosa do sertão.
As informações constam de um livro que a editora Ibrasa lançou recentemente: "A Presença dos Cordelistas e Cantadores Repentistas em São Paulo".
O autor é o jornalista Assis Ângelo, estudioso de cultura popular. "Entrevistei Guriatã para o livro em 1995. Ele já tinha pendurado a viola e rondava os 70 anos. Depois, o perdi de vista."
Como Assis, ninguém sabe por onde anda Guriatã. Entre os cantadores da cidade, o velho repentista é quase uma lenda. Todos o respeitam, juram que não morreu, mas são incapazes de localizá-lo.
Uns acreditam que se mudou para Guarulhos, outros falam em Itaquaquecetuba e até Recife. "A fera está meio escondida", resumem.
Na falta de Guriatã, o paraibano José Francisco de Souza, o Zé Francisco, 59, figura entre os violeiros mais antigos de São Paulo. Desembarcou por aqui há 32 anos. Morava na periferia, mas tocava em bares do Brás (centro).
"Começava a cantoria às 8h e virava a noite", recorda. "O dinheiro mal dava para comer, e a polícia não nos deixava descansar. Prendia os cantadores por vadiagem. Eu mesmo fui detido três vezes."
O repente só sobreviveu porque a comunidade nordestina dependia das rimas para se informar.
"Cantoria fazia as vezes de jornal. Os repentistas nos contavam, em versos, as novidades do país", explica o comerciante Heleno de Barros, natural de Sumé (PB) e "paulistano" há três décadas.
Tanto brigaram para se impor que, agora, os violeiros contam até com uma associação classista.
A União dos Cantadores Repentistas e Apologistas do Nordeste, na Liberdade (centro), surgiu em 1988 e soma cerca de 500 sócios.
O presidente da Ucran, Sebastião Marinho, estima que semanalmente ocorram cem cantorias pela cidade. "Participamos de tudo: formaturas, aniversários, festas de casamento, eleições de sindicatos, encontros políticos."
Na maioria das vezes, se apresentam sem cachê pré-fixado. São as "cantorias pé-de-parede", em que a dupla de repentistas passa uma bandeja entre o público, pedindo dinheiro. Costumam durar, no mínimo, quatro horas.
Há, porém, exibições mais curtas, as "cantorias-shows", que se encerram depois de 30 ou 60 minutos. Os violeiros, aqui, não lançam mão da bandeja. Acertam o cachê previamente -algo entre R$ 800 e R$ 1.500 por dupla.
O nova-iorquino Michael Grossmann organiza "cantorias pé-de-parede" há quatro anos. Proprietário de uma empresa de exportação, vive no Brasil desde 1980. "Encanta-me a agilidade mental dos repentistas."
Ele reúne os cantadores em sua cobertura no Itaim Bibi (zona oeste) e convida amigos para vê-los. Às vezes, promove duelos dos violeiros com músicos de blues.
Faz questão de chamar não apenas os repentistas que moram na cidade. Também convoca os que estão de passagem -e são muitos.
Os principais cantadores do Nordeste permanecem pelo menos um mês por ano em São Paulo. Hospedam-se, quase todos, no modesto hotel Cannes, que se espreme entre as lojas da rua Santa Ifigênia (centro).
Vêm para gravar discos. Em geral, recorrem às produções independentes. "Com R$ 3.000, conseguimos alugar estúdio e bancar 1.000 cópias de um CD. Nós mesmos as vendemos, cada uma por R$ 10", diz o violeiro Raimundo Caetano, de Cuité (PB).
Quem não deseja se aventurar em produções próprias apela para o Centro de Tradições Nordestinas (CTN) -que fica no bairro do Limão (zona norte) e é uma das maiores gravadoras de repentes.
Já lançou 25 títulos. Somente um saiu sob o formato de CD. Os demais ainda estão em vinil.
"O CTN tira entre 500 e 3.000 cópias de um disco. Os autores compram cada uma por R$ 3 e a revendem por R$ 8 ou R$ 10", afirma o produtor Téo Azevedo.
Ele comanda diariamente o "Flor da Terra", na Atual AM, rádio que faz parte do CTN. O programa é um dos poucos que abre espaço para os cantadores.
Existe outro -o "Forró, Repente e Viola". Vai ao ar todas as manhãs pela Divisa FM, de Barueri, uma emissora pirata.

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