São Paulo, quarta-feira, 29 de janeiro de 1997
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A doação de órgãos e o horror à própria morte

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Posso entender, mas desaprovo totalmente, as razões de quem é contra o novo projeto de lei sobre transplantes. Segundo o projeto, toda pessoa se torna automaticamente doadora de órgãos (depois de morrer, é claro). Se não quiser, tem de deixar por escrito. Até agora, vigorava o inverso: ninguém doaria seus órgãos a não ser que tivesse autorizado oficialmente.
Muita gente se choca com esse projeto. Até o ministro da Saúde reagiu, no começo, considerando a idéia "meio totalitária". Depois, parece que mudou de opinião. O governo Figueiredo, se não me engano, já tinha proposto coisa parecida. Foi derrotado no Legislativo. E ainda dizem que Figueiredo era atrasado.
Antonio Ermírio de Moraes, domingo passado, escreveu na pág. 2 um artigo contra a nova lei. O artigo era sério, mas o título não: "A estatização do corpo humano!" Antonio Ermírio reconhece o problema. Nos Estados Unidos, 30 mil pessoas precisam de transplante de rins e só existem 10 mil disponíveis. Mas, argumenta, essa lei "é um desrespeito ao ser humano... é um ato de pilhagem".
"Pilhagem" é uma boa palavra. "Estatização" também. As duas parecem dizer: "Estou sendo roubado! Meus rins, meu coração, meu fígado, até isso querem de mim!"
A reação é compreensível, mas se origina de uma bobagem fundamental. Se não forem doados, meus órgãos nem por isso continuarão "comigo". Serão comidos pelos vermes. A escolha, como bem disse um senador, é entre fazer com que os rins de alguém sirvam para salvar uma vida ou sirvam para alimentar lesmas e formigas.
Entre um verme e um ser humano, creio que ninguém hesitará em favorecer o segundo. Ser pilhado "pelo Estado" e salvar uma vida é melhor do que ser pilhado pelos bichos.
É a minha modesta opinião. Mas o problema desse raciocínio é que ele é macabro demais. Ninguém quer se imaginar comido por vermes; ninguém quer morrer. Aí está o lado compreensível das reações ao projeto.
É que as pessoas se vêem proprietárias de si mesmas, até depois da morte. "Meu rim! Meu coração!" Esquecem que, depois de mortas, o corpo não será mais propriedade delas. Não há "direitos humanos" em jogo, como quer Antonio Ermírio no artigo, porque simplesmente não há mais pessoas vivas, e sim corpos, sendo "pilhados".
Todo o horror diante do projeto é, na verdade, o horror a contemplar a própria morte. Meu corpo, minha vida, não há quem possa tirá-la de mim.
Curiosa concepção de imortalidade, ao mesmo tempo materialista e mística, no fundo puramente supersticiosa e ignorante.
Imagina-se que os direitos de uma pessoa, seus direitos humanos, sejam válidos mesmo depois de ela morrer; seu cadáver tem mandato, possui jurisdição dentro da cova, deve ser respeitado pelo Estado enquanto nem sequer um verme o respeita... Só que não há quem "possua" esse corpo; não há mais sujeito, só há objeto.
A idéia de "preservar o próprio corpo" não é cristã, é egípcia. Quem se defende contra a doação de órgãos deveria ser embalsamado e metido num sarcófago. Pois aposta numa imortalidade material, no fetiche de um corpo que não é mais seu.
Estamos às voltas com uma superstição espírita ao contrário. Os espíritas acham que a alma muda de corpo. Os opositores do projeto acham que o corpo não pode mudar de alma.
Em última análise, o que está em discussão nesse projeto é o horror à própria morte. Justamente por horror a essa idéia é que as pessoas resistem a doar seus órgãos. O Estado, a lei, estão eliminando esse problema.
Decreta-se que todo órgão é propriedade pública. E não propriedade dos vermes. Eis um progresso, só que muita gente não admite que "propriedade pública" seja sinônimo de "propriedade útil" e prefere a inutilidade, a morte material, à salvação de vidas alheias.
Tudo bem. O projeto de lei dá espaço a quem defenda essa mistura de superstição e mesquinhez. Se você não quiser doar seus órgãos, deixe por escrito e pronto. Terá sido um orgulhoso defensor de seu próprio corpo, mesmo quando este tiver deixado de ser seu.
Eis uma promessa e tanto, sobre a qual o poeta e clérigo John Donne (1572-1631) escreveu um sermão memorável. "São tantas as evidências da imortalidade da alma, até para a compreensão de um homem comum, que não foi necessário um artigo no Credo para se fixar essa mesma noção de imortalidade da alma. A ressurreição do corpo, entretanto, não é perceptível a luz alguma que não seja a luz da fé, nem pôde ser fixada por qualquer garantia menor que um artigo do Credo."
Donne continua, em sua magnífica inverossimilhança barroca: "Onde foram parar todas as lascas daquele osso que um disparo de canhão espedaçou e espalhou pelos ares? Onde se encontram todos os átomos daquela carne que um corrosivo carcomeu ou a tísica contaminou e fez evaporar de nossos braços e dos outros membros? Em que dobra, em que sulco, em que entranha da terra jazem todas as partículas das cinzas de um corpo queimado há milhares de anos? Em que recanto, em que ventrículo do mar jaz toda a massa gelatinosa de um corpo que se afogou no Dilúvio?"
Para John Donne, "Deus ainda sabe em que compartimento foi parar cada grão de pérola, em que parte do mundo se encontra cada partícula de pó de cada homem". Quando ele acenar, tudo vai juntar-se de novo, e cada corpo ressurgirá, integralmente, na bem-aventurança de sua matéria refeita.
Mas desse transplante imaginário para o transplante real, e de que dependem tantos doentes, há uma diferença séria. E mesmo que, por milagre, eu recupere meu corpo depois de morto, como quer John Donne, como quer a crença cristã, fará alguma diferença se eu o tiver doado antes a outros pecadores.
Só que, por medo da morte, não queremos doar. Que o Estado faça isso por todos, automaticamente, e salve vidas com transplantes, só posso encarar como boa notícia. Livrou-me de pensar na minha morte. E pensou na vida dos outros. Eis uma bela função, uma função genuinamente pública, do Estado. "Estatizam o corpo humano!", protesta Antonio Ermírio. Ele que dê graças a Deus.

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