São Paulo, sexta-feira, 31 de janeiro de 1997
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Antonio Callado revelava amargura antes de morrer

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Na minha vida, eu diria, o Brasil tem sido uma série de falsas expectativas. Tenho tido uma série de decepções."
Essas palavras de Antonio Callado, ditas a Matinas Suzuki Jr. e Mauricio Stycer na entrevista que a Folha publicou domingo passado, data em que o escritor completava 80 anos e dois dias antes de morrer, são uma espécie de resumo da amargura de alguém que, tendo pautado sua existência pela obsessão em encontrar uma solução para seu país, se despedia da "vida inteira que podia ter sido e que não foi".
Callado morreu como viveu, na contramão de seu tempo, fiel a seus ideais. Preferiu os riscos do ridículo e do anacronismo a embarcar no clube dos novos ricos da queda do Muro de Berlim.
Mesmo que pareça arbitrária, é difícil escapar à comparação entre a foto em que o escritor está ao lado de sua mulher, a jornalista Ana Arruda, com um olhar mais desolado que cansado, e outra foto, publicada por toda imprensa no dia seguinte de sua morte, em que a cúpula do governo surge sorridente, cumprimentando-se à maneira dos adolescentes enquanto comemorava a aprovação da emenda da reeleição. O contraste entre as imagens fala demais à imaginação.
Impressionou, na entrevista da Folha, a severidade com que Callado referiu-se a seu romance mais importante, "Quarup", de 1967. Disse que, apesar de mais durável, o livro é muito inferior a "Reflexos do Baile", publicado nove anos depois.
Callado acompanhava nesse ponto o crítico Davi Arrigucci Jr., que, no ensaio "O Baile das Trevas e das Águas" (reunido no livro "Achados e Perdidos", da editora Polis), definia Callado como alguém que, "mesmo quando se arrisca no balão ficcional (...) não desgruda os olhos do chão".
É verdade, afirma Arrigucci, que, em sua tentativa representar e dar conta da "realidade concreta", Callado "não revela uma consciência aguda dos impasses da narrativa numa época que reconhece as dificuldades de narrar". "Quarup", prossegue Arrigucci, "ainda narra o percurso de um herói individual problemático, Nando, que enfrenta o difícil caminho do religioso ao político".
Talvez seja o caso de chamar a atenção para o ar de família que existe entre "Quarup", o romance "Pessach - a Travessia", de Carlos Heitor Cony, e "Terra em Transe", de Glauber Rocha. Todos são de 67. Em todos o núcleo do enredo está no dilema do intelectual que tem de optar entre a reflexão (ou o sacerdócio) e a política, que o solicita de forma implacável.
Há ainda uma curiosidade sintomática: Callado, Cony e Glauber estiveram presos na mesma cela, em 65, quando preparavam suas obras. Consta que, até a prisão, nenhum deles tinha conhecimento do que faziam os outros.
Vistas em conjunto, as três obras têm um inegável componente profético, descrevem, cada uma seu modo, o que naquela altura apenas se insinuava e que se tornaria uma realidade exasperante logo adiante. Nesse ponto elas se aproximam de "Os Demônios" (1870), a obra-prima de Dostoiévski.
Seria o caso de se voltar a essas coisas. Mesmo porque, como dizia Paulo Mendes Campos, "antigamente as coisas eram piores. Só que depois foram piorando".

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