São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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A autonomia do espetáculo

JOÃO ROBERTO FARIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que é o teatro? O que deve ser o teatro? Para que serve o teatro?
Parece incrível, mas perguntas como essas, aparentemente simples, jamais deixaram de ser feitas e respondidas, desde que os gregos, há 2.500 anos, inventaram a forma dramática, baseada no diálogo e na ação direta de personagens, para celebrar sua história, seus mitos e seus heróis.
Acompanhar o nascimento e o desenvolvimento não do teatro propriamente dito, mas das idéias e reflexões que estão por trás das criações teatrais, desde as mais remotas até as contemporâneas, parece ser uma tarefa ambiciosa, para não dizer pretensiosa. No entanto, foi esse o desafio que o estudioso norte-americano Marvin Carlson enfrentou no livro "Teorias do Teatro - Estudo Histórico-Crítico, dos Gregos à Atualidade".
O que impressiona, ao final da leitura, é o volume de informações que o autor movimenta. Se é inevitável que o livro comece pela análise das idéias de Platão e Aristóteles, já muito conhecidas, e enverede pelos igualmente conhecidos caminhos do teatro romano, da poética medieval, do neoclassicismo, do romantismo, do naturalismo e do simbolismo, louve-se ao menos a maneira clara e precisa com que são comentados os textos teóricos do passado.
Marvin Carlson, sempre que possível, foi às fontes primárias, para melhor compreender a evolução das formulações teóricas. Nesse sentido, os capítulos sobre o teatro europeu na época do Renascimento são excelentes, sobretudo o que aborda a formação do pensamento neoclássico na Itália, como resultado das traduções e interpretações que foram feitas da "Poética" de Aristóteles. Também é estimulante acompanhar o debate que se instaurou na Europa no século 18 e início do 19, em torno dos dois grandes modelos de dramaturgia então em evidência: o drama shakespeariano e a tragédia neoclássica de Racine. Acompanha-se, passo a passo, a formação do romantismo.
É claro que todo livro que pretende construir uma visão totalizadora de um assunto pode tropeçar aqui e ali. O capítulo sobre o século 18 francês, por exemplo, é inferior a alguns outros, talvez pela própria dificuldade encontrada pelo autor para resumir em poucas páginas a poética neoclássica, que teve dezenas de teóricos e que já foi objeto de excelentes estudos específicos. Os especialistas em uma determinada época da história do teatro também poderão encontrar algumas lacunas, o que é compreensível em livros dessa natureza. O próprio Marvin Carlson nos adverte para esse fato, esperando que a partir desta "obra sinóptica, o leitor venha a ser levado das necessariamente breves e tendenciosas passagens aqui citadas a prosseguir os variados discursos da teoria teatral nos textos que estas páginas tentam representar".
Mas o maior mérito do autor encontra-se, sem dúvida alguma, no esforço de atualização que empreendeu na segunda metade do livro, inteiramente dedicada às poéticas teatrais do nosso século, começando pelo estudo das vanguardas -futurismo, expressionismo etc.- e chegando às manifestações recentíssimas da semiótica, da estética da recepção, do feminismo, do multiculturalismo, da "nova história", do desconstrucionismo e das minorias étnicas e sexuais.
Entre os dois extremos, estão os grandes criadores da modernidade teatral, que se mostrará enormemente multifacetada. Copeau e Artaud, na França; Stanislavski e Meyerhold, na Rússia; Gordon Craig, na Inglaterra; Piscator e Brecht, na Alemanha; Appia, na Suíça, eis alguns dos grandes homens de teatro que têm suas principais idéias estudadas. Cada um, a seu modo, abriu caminhos e novas perspectivas para o teatro, fomentando o trabalho criativo das gerações que vieram em seguida.
Entre os encenadores, o livro destaca o trabalho de Jouvet, Dullin, Pitoëff, Baty, Barrault, Vilar, Planchon, Mnouchkine, Grotowski, Peter Brook, Tadeusz Kantor, Bob Wilson, Richard Foreman, Eugenio Barba, entre vários outros. Pelo menos um brasileiro nos representa no livro: Augusto Boal. Há espaço também para o pensamento teatral de dramaturgos como Pirandello, O'Neill, Sartre, Camus, Arthur Miller, Tennessee Williams, Thornton Wilder, Beckett, Ionesco, Adamov, Osborne, John Arden, Pinter, Arrabal, Peter Weiss, Max Frisch, Dario Fo etc. E, finalmente, os comentários alcançam as obras dos teóricos que não foram nem encenadores nem dramaturgos: Croce, Adorno, Benjamin, Lukács, Eric Bentley, Francis Fergusson, Peter Szondi, Lucien Goldmann, Northrop Frye, Souriau, Barthes, Raymond Williams, Patrice Pavis, Issacharoff, Umberto Eco etc.
Não é difícil perceber por que as teorias dos últimos cem anos ganham um detalhamento maior. De um modo geral, desde Aristóteles o teatro sempre foi considerado em função do texto, como parte da literatura. Somente a partir do final do século passado é que o teatro começou a ser visto como uma arte autônoma, centrada no espetáculo, no qual o texto passou a ser mais um dos elementos que deviam interagir com outros, como o cenário, a iluminação, a música, os figurinos e a interpretação do ator.
Essa nova arte ganhou também um novo demiurgo: o encenador, que se tornou responsável pelo resultado final do espetáculo. Assim, se no passado o pensamento teórico privilegiou o texto, discutindo preferencialmente os seus modos de construção formal, as diferenças entre os gêneros e sua maior ou menor pertinência literária, nos tempos modernos houve uma verdadeira multiplicação das teorias teatrais, proporcionada tanto pelo surgimento de artistas extraordinários, que transformaram o palco num verdadeiro laboratório de experiências as mais diversas, quanto pelo desenvolvimento do pensamento teórico no meio universitário, que tem se revelado amplo e diversificado, pelo menos na Europa e nos Estados Unidos.
Marvin Carlson apresenta, portanto, as linhas gerais das principais visões teóricas do teatro ocidental, relativas predominantemente ao texto dramático, ao trabalho do encenador e à arte do ator. Para nós, brasileiros, que vivemos um tanto à margem da produção teórica no terreno teatral, o livro vale por um curso e pela visão de conjunto que oferece. E também por nos dar as coordenadas para compreendermos melhor as nossas próprias produções teatrais modernas e contemporâneas.

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