São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997 |
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Espantalho em chamas
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
Por esses caminhos, "Homens Livres na Ordem Escravocrata" já foi identificado com teorias que nele são criticadas, já recebeu a rubrica de weberiano, já foi arguido por usar conceitos marxistas. Nunca disse nada em qualquer desses casos: correto ou enganado, confuso ou preciso, benévolo ou não, é ofício do crítico expor as suas diferenças e os seus juízos, desde que identificados os focos teóricos e os fenômenos em pauta, e desde que haja demonstração. Até na crônica do marxismo paulista estive em salões onde nunca pisei; diferenças teóricas afastavam-me desse círculo. Essa presença ausente não me causa espécie: para além da forma simpática como foi feita a lembrança, havia naqueles dias -menos longínquos no tempo que nas almas- um trânsito de idéias, apesar das censuras, divergências e arrogâncias. Antes que Roberto Schwarz me atribuísse efeitos colaterais do grupo de estudos sobre Marx, outro membro daquelas reuniões, num congresso da SBPC (lá se vão anos), ouvindo-me contestar as pesquisas sobre comunidades autônomas, então muito em voga, disse-me algo como: "Nós fazemos o seminário, você avança a reflexão". Existia, de fato, um campo acadêmico de leituras e interesses, base provável da alusão de Schwarz. A "petite histoire", aqui, não tem qualquer objetivo auto-indulgente de alcançar, por meio da confissão pessoal, os macroprocessos, como está na ordem do dia. Anedotas valem pelo que são, nada mais: neste caso, um simples testemunho de que minha conduta não é intolerante para com as críticas ou juízos sobre meu trabalho, nem mesmo quando a meu ver equivocados, desde que haja algum esforço de prova. O fundamentalismo reside na resenha dogmática de Fausto; o boneco de palha foi produzido por ele, não por mim. Quanto a atear fogo no espantalho... é ato digno de todo ser pensante enquanto simulacros esvoaçarem na cena política ou doutrinária. Daí minha aversão pelo "clássico". Agradeço a honra, mas mandar para a transcendência é uma boa maneira de "promover para remover", técnica da Igreja e do Exército. Interessa que um livro resista ao tempo, que atravesse o espaço do pensamento e da prática de modo significativo para as gerações presentes; convertê-lo em "marco histórico" é tentar condená-lo a triste morte. Na resenha de Fausto, o caso é diferente dos acima referidos, onde cabe tolerância. Em um ponto concordamos: é ótima a idéia de colocar, lado a lado, sua resenha e minha resposta: o leitor teria a exata medida do quanto foi afirmado sumariamente, banalizando a pesquisa; veria também como foi escamoteada a sua contribuição nuclear, histórica e política, dirimindo a sua pertinência e atualidade. Os dois argumentos básicos de Boris Fausto são cronológicos: estudos "mais recentes", sem dizer como nem por que, abalariam o meu trabalho. Desde quando, em ciências humanas, o "dernier cri" é critério e desde quando a consideração de grupos autônomos é nova? Seu outro reparo é sobre a água que passou por debaixo da ponte, neste século, levando de roldão os resultados que apresentei. Nestes, quanto ao processo de alienação, o arrazoado de Fausto alinha "não concordo... não ignoro... não me leva ao ponto... não assumo... não aceito...", certezas subjetivas, do campo da crença e da opinião, impertinentes em epistemologia. Mas não é preciso muito latim para ver o coronelismo entranhar-se nas atuais "reformas" do Estado, explorando a continuidade da velha dominação na escala máxima hoje permitida pela enorme riqueza e pela velocidade das comunicações. Admire-se a galharda fotografia equestre do presidente, no meio da clientela lisonjeira (Folha, 27/9/97). Um amarelecido retrato de fazendeiro antigo não figuraria melhor o poder pessoal abençoado pelo "Leão do Nordeste". A cúpula política assim se favorece; mas algumas invenções de liberdade podem escapar ao mando autoritário, caso em que o nosso presidente corre sério risco de cair do cavalo, trambolhão que já aventei no Mais!. Minha derradeira anuência com Fausto: saí de meus cuidados apenas em atenção ao leitor, que merece mais do que o resenhista lhe ofereceu. Não estivéssemos em um espaço público, e fosse minha a escolha, ele não seria meu interlocutor, como jamais o foi anteriormente. Texto Anterior: MEMÓRIAS; ROMANCE; CRÍTICA; RELIGIÃO; SEXUALIDADE; TEATRO; SOCIOLOGIA; REVISTA Próximo Texto: As estratégias do cortesão Índice |
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