São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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Ratinho, o Conan de Curitiba, decifra o país que lincha todo dia

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR-ADJUNTO DE OPINIÃO

"Quando a gente não pode fazer nada, avacalha."
("Bandido da Luz Vermelha", no filme de Rogério Sganzerla)

Muito fácil "falar mal" de Ratinho. Fácil e inútil porque ele é inimputável. Criticá-lo significa, além disso, estar sujeito a ameaças físicas. Desde que estreou na Record com o "Ratinho Livre", há duas semanas, ele resolveu sofisticar seus métodos: agora sua "indumentária" inclui um cassetete, que vira e mexe o apresentador puxa debaixo da mesa para brandir enquanto vocifera contra adversários (reais ou imaginários).
Na última segunda, estraçalhou a pauladas o seu próprio fax porque "não funcionava". Estamos, pois, diante de um fenômeno. É como se Conan, o Bárbaro, tivesse sido exportado do fundo de quintal curitibano para conquistar a audiência do resto do país.
Seu programa, no entanto, não respeita todas as convenções do gênero. Talvez por isso não seja totalmente desprezível tentar entendê-lo. O segredo possivelmente esteja no fato de que tudo ali aparece subordinado à lógica de uma avacalhação geral e deliberada.
Impossível discernir onde termina o truculento que espuma e onde começa o palhaço que escarnece. Chacrinha e Afanásio Jazadji fundem-se numa só figura.
A sequência do programa, por sua vez, também obedece ao mesmo turbilhão caótico, onde tudo se indiferencia. As reportagens sobre o "velho tarado" que bolina crianças, ou sobre a "gangue que decepa cabeças" para realizar rituais de magia negra na periferia de São Paulo, misturam-se ao quadro do jovem efeminado que executa no estúdio a dança do ventre ou à entrevista ao vivo com um dos líderes do MST. Sobre este último, Ratinho diz, depois de examinar suas mãos para checar se "trabalha na roça", que tem "uns calinhos de merda".
Ao mesmo tempo em que se diverte atirando sapatos nos seus funcionários e diverte o público incitando todo o tipo de preconceitos, o apresentador condena os maltratos e as humilhações que fazem parte do cotidiano dos pobres. Uma cena anula a seguinte e um discurso anula o outro.
O poder de sedução de Ratinho não está nem nos surtos de indignação nem nos espasmos de caçoada, mas na performance tresloucada que as mistura num único liquidificador, o qual, por sua vez, acaba funcionando como espelho fiel da moenda social (essa muito tangível e real) que lhe serve de matéria-prima.
Talvez pelo excesso de realismo, o efeito do conjunto soa farsesco. E por isso acaba seduzindo também a classe média, para quem aquilo tudo assume ares cinematográficos e se transforma em "cult". (Vendo o programa, este crítico teve vontade de vomitar, mas também deu enormes gargalhadas).
Mal comparando, tudo se passa como no mundo de Athayde Patreze, cujos extremos de cafonice e servilismo têm a capacidade de revelar o segredo "oculto" de seus pares almofadinhas do colunismo social, que acreditam ser menos cafonas porque dispensam o microfone de ouro e menos servis porque não repetem a cada frase que tudo "é um luxo".
Nessa linha, não deixa de ser divertido que o novo programa de Ratinho seja ambientado num cenário que estiliza de modo kitsch o do "Jô Onze e Meia" e conte também com a sua bandinha -versão mambembe do famoso quinteto.
Vai aqui uma provocação para pensar na cama: e se o abismo incontornável entre o Conan de Curitiba e o entrevistador refinado dos Jardins não passar de uma questão de... "estilo"?
Assim como Jô, Ratinho é um "craque": promove linchamentos diários do país que ele, ao mesmo tempo, decifra e representa tão bem.

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