São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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Literatura naufraga na escola

MARILENE FELINTO

MARILENE FELINTO; FABRIZIO RIGOUT
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Professor adota livro-isca

Livro de literatura ou CD-ROM? Livro de literatura ou Internet? Biblioteca ou megalivraria? A atual relação da escola com o livro de literatura é enredo de um embate novo. Já não é apenas com os multimeios que o livro compete -com a televisão, a informática.
O livro de literatura na escola é sobrevivente de um naufrágio resultado do confronto entre o livro e o próprio livro -entre a literatura propriamente dita, a tradicional, e outra coisa, a marola, a megamarola, da chamada "literatura" infantil e juvenil.
Perdido no centro do naufrágio está o professor de português -ele próprio náufrago da ignorância da sociedade brasileira quanto ao valor da literatura para a formação integral do indivíduo, como aponta a professora e crítica literária Nelly Novaes Coelho.
Mal formado, mal pago e sobrecarregado pela carga horária, o professor de português tenta salvar das águas as páginas úmidas do que resta de nosso verdadeiro cânone literário: os Machado de Assis que bóiam, os Alencar, os Graciliano, as Clarice e os Guimarães.
A Folha visitou dez escolas do ciclo 2 do ensino fundamental -de 5ª a 8ª série-, das redes pública e privada de São Paulo, para verificar os procedimentos de escolha e utilização do livro de literatura em sala de aula. Na rede pública, tanto nas escolas municipais quanto nas estaduais, a situação já ultrapassou todos os limites do aceitável, a despeito dos esforços até mesmo do Ministério da Educação e Cultura para fazer o livro chegar à escola.
Chegar, até que o livro chega. Acervos não faltam. O problema é o tipo de livro que chega e nas mãos de quem ele cai.
Sob a redutora qualificação de "paradidático", o livro de literatura que atinge hoje a população de 5ª a 8ª séries é um texto simplificado a ponto de Monteiro Lobato ser considerado difícil para crianças de 11 e 12 anos da rede pública.
"Um aluno de 5ª série da rede pública ainda não tem fluência de leitura suficiente para ler Monteiro Lobato, por isso os professores estão escolhendo livros cada vez mais simples", comenta Idmea Semeghini, 51, professora de prática de ensino de português da faculdade de educação da USP.
Mesmo nas ilhas de auto-suficiência que são as grandes escolas particulares de São Paulo, em que o professor é melhor preparado, melhor pago e tem melhores condições materiais de trabalho (desde a origem socioeconômica do aluno até a fartura da biblioteca), ele não escapa da adoção do "livro-isca", best sellers de qualidade duvidosa, mas que "atraem o aluno para a biblioteca".
A professora Lenira Buscato, do colégio Bandeirantes, explicou por que um clássico da literatura juvenil como "A Ilha do Tesouro", de Robert Louis Stevenson, foi considerado difícil por seus alunos da 6ª. série (leia trecho abaixo).
"O livro de Stevenson foi reprovado unanimemente pela classe porque é o contrário de 'O Caso dos Dez Negrinhos', de Agatha Christie, também lido por eles, e cuja narrativa num único espaço e com poucos flash-backs, facilita a compreensão."
Trata-se do processo de minimização das letras como critério de verdade, numa época em que a cultura passa por transformações estruturais, segundo a professora Nelly Novaes Coelho.
Para Alfredo Bosi, crítico literário e professor de literatura brasileira da USP, é preciso "verificar se a literatura infanto-juvenil de hoje pode ser chamada de literatura ou se esses livros são apenas um trabalho meio comercial, meio demagógico, que quer aliciar o adolescente, misturando coisas muito modernas, muito recentes, com história em quadrinhos, em uma linguagem que não é nem literária nem oral".

Colaborou Fabrizio Rigout, da Redação

LEIA MAIS nas págs. 3-15 e 3-16

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