São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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O gênio fora da garrafa

MARTIN AMIS
ESPECIAL PARA O "THE NYT BOOK REVIEW"

Espere muita coisa da próxima sentença. Entre outras qualidades, o título do brilhante novo livro de Don DeLillo oferece uma resposta conveniente à "grande pergunta" sobre o romance americano: onde o "mainstream" vem se escondendo?
Os grandes e velhos escritores, as vozes universais de meados e segunda metade do século (predominantemente os grandes judeus e John Updike), estão ficando mais velhos e maiores, mas a terra sobre a qual presidem parece estar se encolhendo. Ademais, parecia que seu contingente não seria reabastecido por escritores comparavelmente fundamentais. Será que era uma mudança de época, uma extinção em grande escala? Não. Era uma calmaria estratégica.
Alguma coisa atomizou o "mainstream". A onda seguinte de genialidade estava ali, mas não visivelmente. Na medida em que o "mainstream" era uma instituição, esses escritores não podiam trabalhar nele. Eles buscaram a clandestinidade, procuraram um submundo de sombras -incógnitos, incomunicáveis e silenciosamente dissidentes, suas reputações literárias mantidas em grande medida por seu caráter cult.
Mas agora a condição que provocou a grande descontinuidade nas letras americanas chegou ao fim. Os romancistas estão saindo do bunker. Os contemporâneos exatos de Don DeLillo, Robert Stone e Thomas Pynchon, parecem estar preparados para uma expansão mais completa. No entanto, de repente é o próprio DeLillo quem preenche o horizonte. "Underworld" (Submundo) pode ou não ser um grande livro, mas não há dúvida que faz de DeLillo um grande escritor.
Desnecessário dizer que sua obra já era respeitável. Nele temos um escritor de intelecto elevado e originalidade seca, equipado com olhos e ouvidos extraordinários -sem falar de nariz, paladar e dedos. Desde o início -"Americana" (1971)-, DeLillo apareceu preparado e sofisticado. Naturalmente, sendo um escritor jovem, exercia controle intermitente sobre suas energias. Os quatro livros seguintes, que incluem o diamante de invenção cômica que é "End Zone" e o grande, generoso e necessário fracasso "Ratner's Star", deram mostras de uma intensidade igualmente errática.
Enquanto narrativas, pareciam ser desafiadoramente informes e quase comicamente estáticas. Elas não se dirigiam a um destino, mas desciam becos sem saída, descrevendo meias-voltas e derrapagens constantes, além de ficarem paradas em engarrafamentos. Elas não "chegavam ao fim". Terminavam. O distanciamento de DeLillo nunca foi redundante ou reflexivo; era rico, sombrio e perigoso. Mas ele ainda era um afluente turbulento em busca de um rio.
"Running Dog" (1978) assinalou um ímpeto novo. Esse "thriller" político enxuto, intransigente, perfeito, foi seguido por um desvio de curso longo e implausivelmente melífluo, "Os Nomes", o romance europeu -ou mediterrâneo- de DeLillo. É claro que DeLillo sempre foi um escritor literário -profundamente literário e também veladamente literário.
Em "Os Nomes", o estilo elevado muitas vezes soa rígido e inflexível; ele sabe fazer, mas dá a impressão de estar com as articulações rígidas. Seja como for, a experiência evidentemente foi salutar, porque a partir desse momento, atingimos a veia principal.
O novo livro é o velório que DeLillo faz da Guerra Fria. Segundo seu argumento, a descontinuidade na vida cultural norte-americana tem uma causa primária: as armas nucleares. O hiato foi inaugurado no dia em que Truman liberou a força da qual o Sol tira seu poder contra aqueles que levaram a guerra ao Extremo Oriente, e foi institucionalizado quatro anos mais tarde, quando a União Soviética começou a atingir uma paridade aproximada com os EUA.
O poder cósmico passava a estar em mãos mortais, as mãos do Estado, que fez os ajustes apropriados. O Estado era o inimigo de seus inimigos, mas a lógica nuclear decretava que o Estado deixava de ser seu amigo. Numa das cenas do livro, a professora (uma freira) entrega a seus alunos plaquetas de identificação do tipo colocado em volta do pescoço de cachorros.
"As plaquetas visavam ajudar os serviços de resgate a identificar crianças perdidas, desaparecidas, feridas, mutiladas, inconscientes ou mortas nas horas seguintes ao início da guerra atômica... Agora que tinham suas plaquetas, com seus nomes inscritos sobre o latão, o exercício deixava de ser uma coisa distante e passava a ter tudo a ver com elas e a guerra atômica."
A guerra nuclear acabou nunca acontecendo, mas essa foi a experiência nuclear, impossível de ser sentida por quem nasceu cedo ou tarde demais para ela. Para saber o que era, você teria que ter sido uma criança em idade escolar, agachada debaixo da mesa, esperando que ela pudesse lhe proteger contra o fim do mundo. Como as pessoas reorganizaram suas vidas em torno desse vazio moral, com seu terror e seu absurdo exorbitantes, é o tema de DeLillo.
"Underworld" passeia com confiança suprema pelo tempo (o último meio século) e pelo espaço (Harlem, Phoenix, Vietnã, Texas, Bronx), misturando personagens fictícios com diversos heróis da história cultural (Sinatra, Hoover, Lenny Bruce). Mas seus verdadeiros lugares são os "espaços brancos no mapa" (os locais dos testes) e seus principais atores, as vítimas dos resíduos das explosões nucleares, reais e imaginadas. DeLillo, o poeta da paranóia, é persistente sem ser tendencioso. Mas mesmo os retratos que pinta da vida americana amena, esperançosa, pré-pós-moderna, brilham com a luz doentia da traição, do abuso.
A "grande sombra" recuou e o terror retornou ao âmbito meramente local. A "Destruição Garantida Mútua" foi explodida; as bombas não detonaram. Apesar disso, as crianças que usaram as plaquetas de cachorro terão que conviver com a descontinuidade em seus corações e mentes. O prólogo de DeLillo é intitulado "O Triunfo da Morte", devido ao quadro de Brueghel do mesmo nome. A morte acabou não triunfando. Ela apenas reinou por 50 anos. Entendo que DeLillo está dizendo que, durante essas décadas, todos nossos melhores sentimentos levaram uma surra. Um temor mortal e onipresente nos constrangeu.
O protagonista, Nick Shay, trabalha para uma empresa chamada "Contenção de Resíduos". E "Underworld" é, entre outras coisas, uma reflexão irônica e dramática sobre excrementos, resíduos, lixo, detritos. Num epílogo inspirado, intitulado "Das Kapital", Shay visita o Museu dos Deformados, em Semipalatinsk, e se vê diante de fetos conservados em vidros de picles Heinz.
A título de conclusão, deve ser dito que aqueles que ficarem com este livro viverão uma recompensa inteiramente inesperada. Mais do que monumental, "Underworld" é espalhado, além de ser difuso de uma maneira que um romance longo não precisa ser. Há um intervalo, quando chegamos perto da metade, em que tudo fica silencioso. Mas depois se recompõe e vai ganhando massa. Quando notei a quantidade surpreendente de aproximações que DeLillo utiliza ("uma espécie de tristeza"), meus sentimentos em relação ao autor começaram a mudar.
Lendo sua obra, sentindo o rigor de sua linguagem, a disciplina quase inumana de suas percepções, muitas vezes se temia pelo equilíbrio do homem. Entretanto, quem era o homem? DeLillo normalmente está ausente de sua ficção -uma inteligência espectral. "Underworld" é seu livro mais exigente, mas também o mais transparente. Possui uma subtonalidade de dor pessoal que tem a ver com as irreversibilidades de uma vida jovem -um registro que DeLillo nunca antes tocou.
Não é todo dia, nem toda década, que se assiste à ascensão de um grande escritor. Isso quer dizer que, de agora em diante, todos nós estaremos vivendo numa época mais interessante.

Tradução de Clara Allain

Onde encomendar:
"Underworld" pode ser encomendado, em São Paulo, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) e, no Rio de Janeiro, à Livraria Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel 021/294-5994).

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