São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma bússola para o labirinto

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para o pensador gnóstico em Borges, "os espelhos e a paternidade são abomináveis, porque multiplicam e disseminam o universo" -o visível, mas ilusório labirinto dos homens. Gnósticos sentem-se à vontade com Jung e muito desconfortáveis com Freud, como é o caso de Borges; e ninguém se surpreende de ouvir esse argentino, normalmente tão cavalheiresco e sutil, desprezar Freud como "um charlatão ou um louco", para quem "tudo se reduz a uns poucos fatos de natureza desagradável".
O gnóstico olha no espelho de seu mundo caído e vê não a si mesmo, mas um duplo obscuro, que vem assombrar sua fantasmagoria. Uma vez que o Deus ambivalente dos gnósticos preserva dentro de si um equilíbrio entre o bem e o mal, o escritor dominado pela visão gnóstica também será moralmente ambivalente. No que toca à imaginação, Borges é um gnóstico; mas intelectualmente é um humanista naturalista e cético. Essa divisão, que só causa mal à sua arte, tornando-o uma figura menor do que escritores gnósticos como Yeats e Kafka, mesmo assim faz dele um moralista admiravelmente firme, como se vê em suas entrevistas gravadas.
A grandeza de Borges está na dignidade estética tanto de Lönnrot, que na hora da morte critica o labirinto em que foi pego pelo excesso de linhas, quanto de Scharlach, que um momento antes de dar o tiro fatal promete ao detetive um labirinto melhor, quando caçá-lo de novo, em outra encarnação.
Os críticos de Borges tendem a tratá-lo com violência, indo atrás dele da mesma forma que Lönnrot persegue Scharlach, com uma bússola; mas ele nos obriga a escolher suas próprias imagens para a análise. Segundo Freud, "no tratamento psicanalítico é sempre o terapeuta quem dá ao paciente (em maior ou menor escala) a imagem consciente e antecipatória através da qual este fica em posição de reconhecer e abordar o material inconsciente".
É bom lembrar que Freud está falando de terapia e do trabalho de mudarmos a nós mesmos; a analogia entre as imagens do terapeuta e do ficcionista pode não ser perfeita. O terapeuta, além disso, no exemplo de Freud, não nos dá senão uma única imagem, enquanto Borges nos dá uma verdadeira coleção. Para nossos propósitos, vamos ficar só com espelho, labirinto e bússola.
Falando de sua primeira história, "Pierre Menard, Autor do Quixote", Borges comenta que ela nos dá uma sensação de ceticismo e cansaço, de "ter chegado no fim de uma longa linhagem literária". É significativo que seja essa sua primeira história, expondo desde logo seu fastio com o labirinto vivo da ficção, no qual nem sequer adentrara. Será que estamos condenados a vê-lo mais como um crítico da fantasia do que como um fantasista? Quando lemos Borges -seja em seus ensaios, poemas, parábolas ou contos- será que o que estamos lendo vai além de uma glosa à fantasia e particularmente às defesas do cético, contra os encantamentos da ficção?
Borges pensava ter inventado um tema novo para a poesia -em seu poema "Limites"-, esse tema sendo a sensação de estar fazendo, ou vendo, alguma coisa pela última vez. É extraordinário que um homem de letras tão profundamente culto pudesse ter essa idéia, já que a maior parte dos poetas fortes chegados à idade avançada sempre escreveram sobre isso (muitas vezes, é verdade, de forma recôndita, ou oblíqua).
Mas é altamente revelador que um teórico da influência poética chegasse a pensar nesse tema como tendo sido inventado por ele, já que Borges sempre foi um elegista das coisas-em-sua-despedida, um poeta das perdas. Muito embora console-se com a reflexão sábia de que só se pode perder o que nunca se teve e de que toda forma de reconhecimento é reconhecimento de si. Toda perda é de nós mesmos e até a perda de uma paixão amorosa que acabou é, diria ele, a dor de um retorno aos outros, não ao eu. Será essa uma sabedoria da fantasia e da ficção, ou de algum outro gênero completamente diverso?
O que falta a Borges, a despeito da inteligência artificiosa de seus labirintos, é precisamente a extravagância do fantasista; ele não confia em seus próprio impulsos mais livres. Vê-se a si mesmo como um homem autônomo, modestamente habilidoso; mas não é outra coisa senão mais um indivíduo audodestrutivo edipiano. A economia autoprotetora e a astúcia explícita de sua arte são variedades próprias da mais clássica angústia; e o padrão repetido de seus contos expressa, a seu modo, um temor implícito do romance familiar. O espelho gnóstico da natureza só reflete para ele o labirinto prometido por Scharlach, "uma única linha reta e indivisível", a linha de todas essas ruas sórdidas que se confundem no horizonte da Buenos Aires fantasmagórica.
O observador temerariamente perspicaz, preso às simetrias de sua própria bússola mítica, jamais foi temerário o bastante para se perder numa história -para nosso azar, se não dele. A extravagância, em Borges, só poderia ter sido um movimento ficcional para longe do tema do reconhecimento, na direção de uma arte ainda maior. Sua história favorita era "Wakefield", de Hawthorne, que ele descreve como sendo "sobre o homem que fica longe de casa todos esses anos".

Tradução de Arthur Nestrovski.

Texto Anterior: Coluna Joyce Pascowitch
Próximo Texto: CONHEÇA OS AUTORES
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.