São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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Noite de blues une brancos e negros

EDSON FRANCO
DA REPORTAGEM LOCAL

Com 66,6% das atrações formadas por músicos de tez clara, a noite blueseira do Free Jazz Festival confirma um diagnóstico no cenário musical norte-americano: o blues está com vitiligo.
Integrantes da safra intermediária de blueseiros brancos formada em meados dos anos 70, os guitarristas Jimmy Vaughan e Ronnie Earl dividem hoje o palco do Palace com o também guitarrista Otis Rush, único negro nos cartazes.
E esse processo de embranquecimento é bom ou ruim para o blues? É ótimo. O surgimento de músicos loiros, bonitos e saudáveis, como Jonny Lang, 16, e Kenny Wayne Shepherd, 19, está injetando uma dose de hormônios no estilo.
Guitarristas como os citados no parágrafo anterior estão trazendo uma nova legião de ouvintes para o blues e encurtando o caminho que separa o estilo da MTV.
Com o devido respeito, mas sem compromissos indissociáveis com a tradição, os músicos brancos ajudam a tornar o blues uma música dançante, ritmada e, por que não, alegre. Com eles, o estilo continua levando emoção a corações e mentes. A diferença é que passa a agradar também ao umbigo.
Mostrando sensibilidade, a organização do evento resolveu abrir a noite com Ronnie Earl e sua banda The Broadcasters.
O acerto se explica pelo fato de a música de Earl dispensar palavras, o que pode deixar impaciente ouvintes desacostumados a interpretar os significados dos sons dissociados do discurso vocal.
Com seu último CD, "Colour of Love", no bolso do paletó, ele vai mostrar sua fusão de blues com jazz, o que começou a exercitar no início desta década e que gerou na comunidade blueseira o mesmo sentimento que os norte-americanos tiveram quando Michael Jordan resolveu jogar beisebol.
Passados os anos, Earl mostra que sua música é apenas uma sofisticação vital para a perpetuação do blues. Ele pode passear por diversos estilos, mas suas raízes estão no delta do rio Mississippi.
Refeita do susto, a comunidade blueseira norte-americana concedeu sua maior honra a Earl: o prêmio W.C. Handy de melhor guitarrista de blues em 97, merecida recompensa para esse músico que só pegou uma guitarra ao 22 anos e que hoje tem 44.
Esse é apenas um dos fatos que tornaram este ano perfeito para Earl. Além do prêmio, ele assinou contrato com a gravadora Verve e casou, no dia 19 de junho passado, com Donna Wetzel.
Quem vê o guitarrista hoje dificilmente acredita nas agruras pelas quais ele passou, como dependência de drogas e falta de dinheiro, o que o obrigou a viver algum tempo na casa de Jimmy Vaughan, atração que fecha a noite de hoje.
Vaughan pode entrar para a história da música de maneira torta. Para a maioria, Jimmy é pouca coisa além de irmão e curador da obra póstuma de Stevie Ray Vaughan.
É uma injustiça. Além de ter inspirado o irmão mais novo e ser considerado um herói por ele, Jimmy ajudou a fazer da banda Fabulous Thunderbirds uma espécie de lenda do blues texano.
Com um estilo mais dançante e roqueiro que o de Earl, Vaughan promete terminar a noite blueseira do Free Jazz com uma festa. Para tanto, vai usar o timbre de guitarra seco e agudo, sua marca registrada ao lado do bem cuidado topete.
Recheando o sanduíche branco, Otis Rush vai dar a devida dose de tradição à noite.
E tradição aqui não deve ser entendida como aquela criada na virada do século, mas sim a criada em meados dos anos 50, quando, em Chicago, o guitarrista Muddy Waters "inventou" a eletricidade.
Influenciado pelo blues urbano de Waters, Rush se associou aos também guitarristas Buddy Guy e Magic Sam para criar o estilo conhecido hoje como "west side".
Entre 56 e 58, os três guitarristas eletrizaram o blues pela gravadora Cobra Records. Com uma nova abordagem do instrumento, eles passaram a nivelar a importância dos solos e dos acompanhamentos na guitarra, às vezes transformados numa coisa só.
As décadas seguintes foram cruéis com Rush. Com apenas um hiato em 1971, ano em que lançou "Right Place, Wrong Time", ele só viria a ter seu talento reconhecido nesta década. É incompreensível, já que ele jamais perdeu seu toque peculiar de guitarra, o senso de ritmo elástico e uma voz que é suave mesmo quando aos gritos.
Ouvir Rush e guitarristas brancos na mesma noite é uma chance para constatar que o blues está mudando, mas a água responsável pelo seu embranquecimento continua saindo das mesmas fontes.

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