São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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Gugus, angélicas, carvão e diamante

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR-ADJUNTO DE OPINIÃO

Alguns talvez ainda se lembrem de uma novela irrelevante da Rede Manchete que sucedeu "Pantanal". Os seios à mostra de Andréa Fetter ou de Nani Venâncio provocaram intensos debates, calorosas discussões. Isso não faz muito tempo, mas hoje, comparadas aos programas que se pode ver em qualquer horário e em qualquer canal na TV, aquelas cenas parecem ser de uma inocência quase angelical, um "nu sublime".
O fato de que as coisas tenham mudado não significa, porém, que "tudo é relativo", como gostam de dizer os apressadinhos. Para os conservadores, a equação é clara: aquela ou qualquer outra novela era apenas o prenúncio de uma degradação moral muito maior que viria pela frente; hoje, sempre segundo os conservadores, estaríamos atolados na lama da bandalheira eletrônica.
Os conservadores geralmente erram não porque não tenham razão no que dizem, mas porque só têm razão pela metade. Percebem o problema, mas não identificam as causas. Recorrem na maioria das vezes a um passado idílico (e irreal), diante do qual o presente seria uma deformação abjeta. Boa parte da energia liberada em 64, na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, partia desse raciocínio.
Deu no que deu. A classe média, sobretudo em sociedades malformadas como a brasileira, é quem catalisa uma indignação moral que está no ar para a seguir colocá-la a serviço do mais tacanho obscurantismo. Entre o reconhecimento de um "abuso" e o apelo à censura, a passagem é mais tênue do que costumam imaginar as boas almas.
Temos hoje na TV alguns programas que estão na linha de tiro. O "Domingo Legal", que de resto é uma porcaria horrorosa, é um deles. Colocar crianças para dançar na boquinha da garrafa, como clones miniaturizados de Carla Perez, seria uma imoralidade. Nenhuma pessoa razoável discordaria, mas o que fazer? Censurar? Contra a voz corrente, defendo que não, em hipótese alguma. Seria como varrer a casa empurrando a sujeira para baixo do tapete.
Diferenciar o que é apenas "ruim" do que é "nocivo", como pretende com a melhor das intenções a deputada Marta Suplicy, é uma operação irremediavelmente arbitrária e sempre perigosa.
Um exemplo concreto: Angélica, a loirinha virtuosa, que até há pouco alimentava pela mídia a dúvida sobre sua "doce virgindade" e faturava com isso, serviu-se recentemente da mesma mídia para "comunicar" o seu noivinho que "tudo estava acabado". Ninguém reclamou e todo mundo achou lindo. Uma atitude como essa não é "nociva"? Não é um sinal tão eloquente quanto as crianças do Gugu de que estamos metidos numa enrascada muito maior do que sequer imaginamos?
Democratizar a TV, como se diz hoje, seria o quê? Pautá-la pelo "gosto do povo"? Eis o povo, ele é isso aí, diria Glauber Rocha. Acreditar no esclarecimento das massas é hoje, mais do que nunca, uma questão de muita fé. Talvez ainda seja uma tarefa para políticos crédulos e abnegados. Ao crítico -confortavelmente resignado, dirão muitos- resta apenas a tarefa, aliás cada vez mais irrelevante, de criticar. De que adianta dizer que numa sociedade minimamente esclarecida nem sequer existiriam gugus e angélicas? Na barbárie da sociedade de massas sob o capitalismo triunfante, a diferença entre o que é bom e o que não tende a virar fumaça. Cada um que procure seu refúgio imaginário. Karl Kraus, o bom vienense, já disse: "A virtude e o vício são afins como o carvão e o diamante".

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