São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 1997
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'O Cortiço' e a elite de SP

VINICIUS TORRES FREIRE

Na América, as cidades passam da barbárie à decadência, do viço à decrepitude, sem passar pela civilização, observou Lévi-Strauss no capítulo que dedicou à São Paulo dos anos 30 em seu "Tristes Trópicos". Alguém poderá contestar a civilização que o Velho Mundo produziu, mas, se se pensa em Paris, algum crime talvez compense. Não é o caso de São Paulo.
Pode-se recorrer à história econômica para explicar o desastre urbano de São Paulo, o que era motivo de orgulho até os anos 70 -a cidade não podia parar. Mas é nas ordinarices cotidianas que se flagram os autores dessa obra em regresso que é a capital mais rica do país: boa parte das elites paulistanas, classe média inclusive.
Os paulistanos ricos têm o espírito de João Romão. O personagem de "O Cortiço", de Aluísio Azevedo, era um tipo sebento que fez dinheiro com uma taverna e explorando um cortiço (nenhum problema, em si, em fazer dinheiro). Quando decide virar barão -um colunável do Segundo Reinado-, Romão mostra de vez o que vale sua alma. Entre outras coisas, tenta fazer bonito construindo um sobrado respeitável na orla do cortiço nojento -nem com a estética se preocupava.
A metáfora não se refere só ao fato de os paulistanos "bem" estarem rodeados por 3,5 milhões de favelados e cortiçados, mas ao individualismo selvagem, à mentalidade de saqueador.
Não importa se uma parte da cidade é degradada por viadutos monstrengos ou poluição visual; ou se, entupida de prédios -de má arquitetura- por causa de leis urbanas permissivas ou negocistas, o trânsito infernal e suas consequências afastam os pelo menos remediados para bairros mais distantes. A prefeitura que administra a cidade para um terço da população vai atrás, com fundos públicos, para criar a infra-estrutura para os que se horrorizavam com os destroços que criaram, por ação ou omissão.
A razia começa, às vezes, nos detalhes; é cotidiana e, no fim das contas, cria semi-Calcutás. Não é exagero. Tome-se o exemplo dos Campos Elíseos, que já foram ilha aristocrática e hoje abrigam parte da cracolândia. Olhem agora as avenidas centrais de bairros bons: Pacaembu, Rebouças e Brasil.
Essas avenidas que margeiam a Bélgica paulistana já começam a se deteriorar. O trânsito afasta os moradores, que dão lugar ao comércio. Casas pelo menos simpáticas de classe média têm fachadas cobertas por tapumes ou muros de alvenaria, onde se penduram faixas de pano e anúncios pavorosos. A Rebouças, contaminada pela Consolação, já tem casas de "chope erótico". Logo, ninguém vai querer vender ou passar por lá. Bocas do lixo ou praças de camelôs -vide a avenida Paulista- sempre têm um começo.
É claro que São Paulo não se tornou esse inferno só por causa do mau gosto. A cidade é filha do modelo de desenvolvimento brasileiro, que criou uma ilha de consumo de carros e eletrodomésticos rodeada pela choldra largada à própria sorte nas periferias, há décadas sem perspectiva de casa, escola e trabalho decentes, se entupindo de cachaça e crack, se matando nos botequins de tabiques e eventualmente fazendo incursões na Bélgica.
Enquanto isso, a elite faz o que pode para criar nichos que a protejam da plebe ou que a livrem da sujeira do trânsito afogado por seus carros, sempre privilegiados pelo poder público. É a vitória de João Romão, de uma gente que se beneficiou do modelo econômico, ou que o criou, que destrói com frieza oportunista o patrimônio público que é a cidade.

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