São Paulo, quinta-feira, 16 de outubro de 1997
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O Brasil e a Alca

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

A visita do presidente dos Estados Unidos reacendeu o interesse por um tema que andava meio esquecido entre nós: a eventual formação de uma Área de Livre Comércio das Américas -a Alca.
Nos últimos dias, falou-se bastante no assunto. Infelizmente, a discussão tem sido quase sempre superficial e estreita.
As divergências entre o Brasil e os EUA vêm sendo apresentadas como se estivessem circunscritas, essencialmente, à velocidade de implantação da Alca. Poucos se atrevem a ir muito além disso.
Essa timidez generalizada tem raízes na espantosa regressão do debate brasileiro sobre questões comerciais. Nos anos 80 e 90, fabricou-se um "consenso" enganoso de que a liberalização comercial abrangente é benéfica para todas as economias, independentemente de seu nível relativo de desenvolvimento.
Perdeu-se de vista que os países de desenvolvimento tardio, inclusive os EUA no século 19, nunca foram livre-cambistas. As economias hoje desenvolvidas só abraçaram a causa do livre comércio, e ainda assim com muitas restrições, depois que consolidaram o seu processo de desenvolvimento.
Mesmo de uma ótica liberal, é duvidoso que interesse ao Brasil amarrar-se a uma zona preferencial de comércio das Américas. Ao contrário do que se observa, por exemplo, no México e em países da América Central, o comércio exterior brasileiro é bastante diversificado do ponto de vista geográfico. As transações com os EUA representam apenas cerca de 20% do comércio total brasileiro, contra quase 80% no caso do México. Ao alinhar-se à Alca, o Brasil poderá perder oportunidades e até sofrer prejuízo no comércio com parceiros importantes, como os países da Europa, da Ásia e de outros continentes.
O quadro macroeconômico brasileiro também não favorece a adesão às propostas dos EUA. Como se sabe, nos anos 90, o Brasil improvisou uma abertura unilateral às importações. Fez muitas concessões e nada obteve em troca. Com o Plano Real, adotou uma política cambial imprudente, que prejudica as exportações e estimula excessivamente as importações.
Assim, não há muito espaço para ingressar em nova etapa de liberalização comercial no contexto da Alca. Especialmente quando se leva em conta que os ganhos potenciais do Brasil em termos de acesso ao mercado dos EUA estariam concentrados em produtos considerados "sensíveis" (têxteis, aço, suco de laranja etc.) e sujeitos provavelmente a cronogramas de liberalização muito gradual.
Ressalte-se, além disso, que a Alca, tal como formulada pelo governo americano, não seria uma área de livre comércio tradicional. Não se limitaria, em outras palavras, à remoção de barreiras ao comércio de bens dentro das Américas. Este já seria, em si mesmo, um objetivo ambicioso e problemático para o Brasil. Acontece que as aspirações dos EUA vão mais longe.
A agenda da Alca inclui diversos outros temas: a liberdade de comércio de serviços, a definição de regras comuns relativas a investimentos diretos estrangeiros, padrões comuns para defesa da concorrência, regras para compras governamentais e proteção da propriedade intelectual. É provável que venha a incluir também, por insistência do Congresso americano, normas trabalhistas e ambientais.
Trata-se, portanto, de uma iniciativa mais abrangente do que o Mercosul e outros acordos sub-regionais. Como observaram Robert Devlin e Luis Jorge Garay, em trabalho editado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, a Alca, na forma proposta pelos EUA, é a mais ambiciosa iniciativa econômica da história das Américas.
Por outro lado, em contraste com a integração em curso na Europa, a agenda da Alca não inclui qualquer referência à livre circulação de trabalhadores. Na concepção de Washington, a integração das Américas significa apenas o máximo de liberdade para a circulação das mercadorias, dos serviços e do capital. Naturalmente, dada a enorme desproporção de poder econômico, isso quer dizer o máximo de liberdade para a produção e o capital dos EUA.
Vamos deixar as evasivas de lado. Se for implementada de acordo com o figurino proposto pelos EUA, a Alca transformará o Brasil e o resto da América em uma extensão do espaço econômico americano. Representará uma grande perda de soberania e autonomia para o Brasil. Inviabilizará definitivamente a formulação de um projeto nacional de desenvolvimento.

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