São Paulo, quinta-feira, 16 de outubro de 1997
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Americofobia

OTAVIO FRIAS FILHO

Clinton teve a recepção talvez mais gélida que um governante estrangeiro já recebeu por aqui. Bem fez o presidente do Senado, PhD em truculência pela Universidade Federal do Sertão, que para cada exigência apresentou exigência e meia. A galera aplaudiu, os americanos só perceberam o clima quando já era tarde demais.
O visitante então se retratou, fez elogio ao Mercosul, para ele tanto faz: nada disso vai chegar até o eleitor americano. E FHC pôde colher o que não plantou, alheio que estava ao ranger de dentes, embevecido com a visita a ponto de as câmeras registrarem várias vezes seu olhar languidamente derramado sobre o casal imperial.
A imprensa se dividiu entre as duas atitudes, num primeiro momento propensa à revolta patriótica, admitindo depois que a corrupção é endêmica mesmo, grande parte das exigências não era absurda, o Brasil que cresça e apareça. Essa oscilação reflete nossa ambiguidade de "potência média", nosso desconforto em relação ao atraso.
Visitas de chefes de Estado costumam ter efeito apenas simbólico, a maior parte do tempo é gasta em amenidades. Nada mais normal, portanto, que nessas ocasiões os símbolos adquiram força, como agora. O que é mais subdesenvolvido: aderir à superioridade do outro ou negá-la sem dispor dos meios práticos para tanto?
Somente quando os termos desse dilema se dissolverem, deixando de fazer sentido, é que se poderá afirmar que o subdesenvolvimento terá sido superado, quando já não houver fraquezas a compensar, nem medos a esconder sob bravatas. Até lá, temos de conviver com as contradições próprias da inferioridade.
Que sirva de consolo o fato de que as teorias raciais estão desmoralizadas e mesmo a idéia de identidade nacional está em declínio. Nenhum povo é intrinsecamente melhor ou sequer diferente de qualquer outro. Mais do que isso, cada povo paga um preço sempre elevado pelas opções que faz ou é levado a fazer.
A auto-imagem dos americanos, criada por escritores como Emerson e Thoreau e mais tarde fixada no cinema, é a de um povo de indivíduos livres, aventurosos, rebeldes na sua rusticidade prática. Como reflexo invertido da realidade, essa imagem omite a verdadeira mutilação que o progresso infligiu à vida pessoal.
Nem é preciso referir a patologia americana, a multidão de pessoas que o culto à eficiência transformou em párias, alcoólatras ou "serial killers". Basta contemplar a robotização da "vida normal", que confina os indivíduos nos limites estreitos de uma vida estereotipada, regulada ao máximo pelas expectativas de "sucesso".
Nada disso é motivo para valorizar a miséria e a ineficiência. Mas num momento em que o modelo americano alcançou o auge de seu prestígio, convém lembrar que a civilização mais rica da história foi feita à custa de um empobrecimento brutal, embora invisível, de cada um. Eles têm até nome para isso: "trade off", custo-benefício.

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