São Paulo, sábado, 18 de outubro de 1997
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Imamura chega ao esplendor com "A Enguia"

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

"A Enguia" é um desses filmes que, quando termina a projeção, dá vontade de ficar para a próxima sessão, apenas para poder deter-se com mais atenção à beleza das imagens, aos enquadramentos leves, estonteantes de tão precisos, à elegância da luz. Tudo é impecável na obra de Shohei Imamura, como a assinalar a volta, em grande estilo, do melhor cinema japonês.
Um retorno tão surpreendente quanto a crítica em Cannes, que torceu o nariz para o filme e se espantou pelo fato de ter dividido a Palma de Ouro com "O Gosto da Cereja", de Abbas Kiarostami.
A marcada da crítica é em parte compreensível: este era o 50º ano do festival, e esperava-se com ansiedade pelo "grande filme".
Isso, de fato, "A Enguia" não é. Aliás, esta é a sua virtude. O ponto de partida é quase elementar. Yamashida, um amante da pesca, mata a mulher ao descobrir que ela o trai. Quando consegue a condicional, após oito anos preso, abre uma barbearia, num lugar isolado.
Seu contato com o mundo é precário. Sua afetividade volta-se basicamente para uma enguia, com a qual mantém conversas particulares, o que convêm à sua condição de homem que quer esquecer o passado e, se possível, a humanidade. Como bom peixe, a enguia só ouve. Nunca diz o que Yamashida não quer dizer. Essa recusa do mundo é abalada pela aparição de Keiko, uma suicida (e sósia de sua mulher). Por indicação do tutor de Yamashida na condicional, Keiko vai trabalhar na barbearia.
É tudo muito simples. Mas, embora os contornos do roteiro sejam interessantíssimos e cheios de tensão, o que importa é a possibilidade aberta para Imamura animar seres, objetos e paisagens que entram em cena. Não há uma combinação de cores que não encha o mundo de Yamashida de um calor sereno, que contrasta com o interior dilacerado dos personagens.
Estamos no dia-a-dia, no coração de dramas pessoais desprovidos de transcedência, mas que têm o dom de nos pôr em contato com seres vivos, espessos, contraditórios, múltiplos, secretos, torturados, às vezes medonhos, vez por outra grandiosos, capazes de vislumbrar a felicidade e deixá-la escapar entre os dedos, mas também de achar forças na desgraça.
Em outras palavras, "A Enguia" não é um "grande filme", com efeito, mas é uma obra-prima, sim. Imamura pode filmar uma sensualíssima cena de amor com a mesma maestria com que nos mostra uma pescaria. Em seu filme, a corrida de uma bicicleta rumo ao hospital possui a mesma desenvoltura que torna encantadora uma conversa de barbearia.
Nada é banal. Mesmo o ponto de partida funciona como âncora do desafio do filme: transformar coisas simples em momentos únicos.
Aposta ganha: "A Enguia" é o trabalho de um mestre que controla tempo, espaço, intensidades dramáticas -tudo totalmente. Esta arte sem afetação, sem frescura -mas cheia de frescor e vitalidade- faz de "A Enguia" um dos mais apaixonantes filmes do ano.

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