São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 1997
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'Brasil perdedor' é um país perigoso, diz embaixador

MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Entre a confusa chegada do presidente Bill Clinton ao Brasil e a decolagem do Air Force One, ganhou força a idéia de que o país não deve escancarar seu mercado tão rápido quanto querem os EUA.
"No nosso caso, perderíamos. E esse não é bem o jogo que nós queremos", sustenta o embaixador Ronaldo Sardenberg, secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência, arrematando: "Um país perdedor é perigoso".
Depois de ver Clinton tocar tamborim, marcar gol de pênalti e abraçar criancinhas na Mangueira, Sardenberg computou uma mudança, mesmo que sutil, na relação do Brasil com os EUA.
*
Folha - O mercado consumidor é o grande trunfo do Brasil na era da globalização?
Sardenberg - Sim. O Brasil aparece hoje como país atraente não só para os EUA, mas até para os nossos vizinhos. Isso é fato.
Folha - Quando Clinton disse que o Brasil era uma superpotência, era sobre isso que ele falava?
Sardenberg - Superpotência é uma maneira bem norte-americana de descrever um fenômeno (risos). Nós não nos candidatamos a ser superpotência. O Brasil se organiza, tem condições democráticas. Mantida a moeda estável, tendo em vista a riqueza natural, o tamanho da população, extensão do território, claro que a tendência é o Brasil ter um papel mais importante na economia mundial.
O Banco Mundial diz, em relatório, que o Brasil representa cerca de 1,5% da economia mundial. E a expectativa é que, antes de 2020, esteja representando 2,5%, o que indica uma posição mais importante que a atual.
Folha - O projeto é de liderança na América Latina?
Sardenberg - Na medida em que nosso mercado se abriu e na medida em que nós passamos a comprar muito mais dos nossos vizinhos, criou-se uma dinâmica. Os nossos vizinhos têm inclusive superávit nas suas balanças.
Folha - E isso pode ser sustentado por muito tempo? O Brasil já tem um déficit de US$ 5 bilhões a US$ 6 bilhões com os EUA.
Sardenberg - O que vai efetivamente acontecer em 20, 25 anos, será o resultado de um processo político interno brasileiro. Não está claro ainda o que nós queremos ser como país. Nós vamos optar por um caminho mais rápido de capitalização da economia, de aplicação intensiva de tecnologia no processo produtivo, ou vamos caminhar para uma economia melhor organizada socialmente?
Folha - O presidente Clinton chegou num clima de "go home" e saiu apadrinhado pela escola de samba da Mangueira. Deixando o marketing de lado, qual foi o saldo real da visita?
Sardenberg - A visita foi precedida de uma certa agitação burocrática, que colheu todo mundo de surpresa e causou um certo rebuliço. No transcorrer da visita, ficou claro que os presidentes, em nível político, poderiam levar a uma flexibilização de posições pelo lado norte-americano e também superar a agitação que precedeu a visita. Foi o que ocorreu.
Folha - Foi descartada a oposição frontal dos EUA à consolidação do Mercosul?
Sardenberg - Vitória diplomática é uma coisa muito difícil de definir. Então, foram definidos dois trilhos. Um do Mercosul e outro da Alca (Área de Livre Comércio das Américas). Mais adiante vai se verificar como esses trilhos se encontram. Antes da visita, a impressão era a de que só poderia haver um trilho.
Folha - A Alca sai em 2005?
Sardenberg - Não quero entrar nesse assunto específico do Itamaraty. Diria que as relações entre Brasil e Estados Unidos mudaram de patamar.
Folha - Surpreendeu o comportamento do presidente Clinton, a forma como ele parecia tentar obter apoio popular?
Sardenberg - O presidente Clinton é muito inteligente e preparado. Tem uma prática política considerável. Não chegou à Presidência por acaso.
Que o presidente se sentisse como um pinto no lixo na Mangueira, como disse o Jamelão, eu não esperava. Mas é uma coisa boa. Melhorou tanto a consciência de um lado como do outro.
Folha - Qual foi a real dimensão do constrangimento gerado no governo pelo documento do governo dos EUA classificando de "endêmica" a corrupção no Brasil?
Sardenberg - Os temas tratados no relatório eram extremamente delicados. Nós não precisamos que nos expliquem quais são nossas mazelas. Mas o episódio está ultrapassado.
Folha - A cautela que o presidente manifestou logo na recepção de Clinton ditará os próximos passos da abertura do mercado brasileiro ou é mera retórica?
Sardenberg - O debate sobre a globalização se sofisticou muito. Uma percepção talvez excessivamente otimista, que só via benefícios, foi substituída pela consciência de certos problemas. O discurso do presidente deve ser visto no contexto de que a globalização é uma tendência forte, mas que é um processo ainda a ser trabalhado.
Folha - No momento em que o Brasil acumula déficit considerável no comércio, esse discurso pode ser entendido como um freio da abertura dos mercados?
Sardenberg - Claro que a abertura foi muito rápida, porque a economia era muito fechada. Não apenas a economia, o país todo era muito fechado. Mas temos de ver não apenas os fluxos comerciais, mas os financeiros. A entrada de investimentos externos está muito forte. Passamos de US$ 1 bilhão por ano para um nível de US$ 15 bilhões a US$ 16 bilhões neste ano e com perspectiva de crescer 50% no ano que vem. Então uma boa parte do que nós perdemos, entre aspas, no fluxo comercial, ganhamos no fluxo financeiro.
É fato também que o fluxo financeiro induz importações. Esse capital vem para o Brasil, se instala e importa suas máquinas. A expectativa é que a mais longo prazo a situação se normalize.
Folha - O governo defende a idéia de que a integração hemisférica levaria a uma competição que beneficiaria muito mais os EUA?
Sardenberg - Sem dúvida. O chanceler (Luiz Felipe) Lampreia tem dito isso e mais: que nós precisamos nos preparar para a competição. Nesse momento, a nossa economia ainda não alcançou os padrões de competitividade que deveria para entrar de peito aberto nisso. No nosso caso, nós perderíamos. E esse não é bem o jogo que nós queremos.
Tem um outro aspecto: um país insatisfeito é perigoso. Um país perdedor é perigoso. Você não vai ter estabilidade num arranjo de integração se os países não estiverem satisfeitos, porque isso levaria à contestação. Um país do tamanho do Brasil insatisfeito seria um problema para a ordem regional.
Folha - O Brasil também passou a ver os EUA de forma diferente?
Sardenberg - Os EUA são o país mais importante do mundo, embora sem o mesmo grau de hegemonia do fim da Segunda Guerra. É importante ter uma relação produtiva, amistosa com eles, mas dentro de um padrão de negociação em que nós estejamos conscientes dos nossos interesses.
É claro também que a relação com os EUA é uma das relações que o Brasil mantém com o mundo. É espantoso ver que 17,5% das nossas exportações vão para a Ásia. De maneira que a graça do jogo está aí: termos relacionamentos criativos com vários parceiros.

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