São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 1997
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Casal Clinton vive nova lua-de-mel

JORGE CASTAÑEDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Viagem à América Latina, na semana passada, teve clima festivo, mas não escondeu contradições diplomáticas

Basta lembrar os tomates com que foi recebido o vice-presidente Richard Nixon em Caracas no final dos anos 50, ou a inesquecível passagem de Jimmy Carter pela Cidade do México em 1979. Assim, não devemos relutar em reconhecer o sucesso pessoal conseguido pelo casal Clinton, nem menosprezar o esforço que ambos fazem para conquistar a simpatia dos latino-americanos, tanto empresários e dirigentes poderosos quanto pessoas nas ruas e opinião pública.
Hoje os EUA parecem considerar, mais uma vez, que seus interesses regionais não apenas são transparentes, mas também totalmente compatíveis entre si. Resumindo, o "império", como era costume designá-lo em épocas anteriores, dá a impressão de acreditar que seus objetivos e aspirações na América Latina se complementam, se reforçam mutuamente e andam de mãos dadas uns com os outros.
Na realidade, as coisas são mais complexas. Existe uma contradição flagrante entre as diversas metas e interesses dos Estados Unidos na região, contradição esta que os Estados Unidos, por diversas razões, se negam a admitir.
Mais além da duvidosa afinidade entre o advento das políticas extremas de livre mercado e a democratização da AL -e não é tão certo assim que um implique o outro, ou que representem partes interligadas de um todo positivo-, a compatibilidade entre esses objetivos e os outros que Washington insiste em pôr sobre a mesa em suas negociações em diferentes países da região pode ser questionável.
O combate ao narcotráfico e à imigração, tanto legal quanto ilegal, constitui, ao lado da liberalização comercial e dos demais preceitos do chamado "consenso de Washington", as pedras de toque da postura dos EUA para com o resto do hemisfério.
No mundo perfeito dos funcionários do Departamento de Estado, esse conjunto de objetivos não encerra contradição; no mundo real, sobram razões para duvidar da harmonia. As políticas de abertura comercial, cortes de subsídios e outras reduções nos gastos públicos, foram devastadoras no campo latino.
A longo prazo, também é possível que a nova industrialização latino-americana, puxada pelas exportações e os investimentos estrangeiros, consiga absorver a população deslocada das zonas rurais pela globalização.
Mas, enquanto o longo prazo não chega, as pessoas precisam comer -e tendem a encontrar meios de fazê-lo de duas maneiras muito precisas: imigrando para o norte, semeando folhas de coca, papoula ou maconha num número crescente de países em toda a região ou tomando parte no lucrativo, perigoso e atraente negócio do tráfico de drogas propriamente dito.
Não se pode culpar o neoliberalismo pelo crescimento do narcotráfico em nossa região, mas desconhecer as consequências que determinadas medidas provocam em determinados meios é dar provas de uma cegueira espantosa.
Assim, a abertura das fronteiras entre o México e seus vizinhos ao sul, e entre o México e seu vizinho ao norte, com certeza facilita e barateia o comércio lícito entre os países envolvidos. Mas seria preciso muita ingenuidade para acreditar que ela só beneficia os intercâmbios legais.
A passagem facilitada de contêineres, embarcações e pessoas é aproveitada para expandir o comércio ilegal, de substâncias químicas precursoras e armas, do norte para o sul, e de entorpecentes de todo tipo, do sul ao norte.
Não se trata de aprovar ou rejeitar uma ou outra medida, mas simplesmente de destacar seu caráter contraditório: não é possível impedir os camponeses mexicanos, os de Chapare ou do Alto Huállaga, de semearem seus cultivos de sempre e depois se surpreender quando eles se associam aos grandes capitalistas de risco que são os chefões dos cartéis de drogas de nossos países.
Mas se o fundamentalismo de livre mercado, tão caro a Clinton quanto a vários de seus anfitriões da semana passada, não necessariamente está em perfeita sintonia com as outras metas da política dos EUA para com a AL, a extensão da democracia representativa por todo o continente tampouco combina totalmente com essas metas.
A extradição de cidadãos desses países, a presença conspícua e numerosa de agentes da DEA, o crescente envolvimento das Forças Armadas nos trabalhos de investigação e detenção de criminosos, a participação de outros órgãos norte-americanos em outros âmbitos da "guerra ao tráfico" eram todos decisões que os governos autoritários podiam aceitar ou não, sem levar em conta o resto da sociedade.
Agora a situação é outra. Agora há imprensa e meios de comunicação de massas, partidos de oposição e juízes independentes, uma opinião pública mais informada e elites menos amedrontadas.
Em muitas ocasiões, o resultado gerará uma resistência -se sábia ou cega são outros quinhentos- às pressões dos EUA. A democracia permite que os povos cometam enganos, se é que negar-se a travar uma guerra norte-americana em solo latino-americano seja engano.
Assim, Bill e Hillary Clinton puderam festejar sua segunda lua-de-mel em terras latino-americanas com tranquilidade, no que diz respeito à simpatia pessoal que despertam.
Mas não devem confundir ambiente com substância: como costuma acontecer com as grandes potências ao longo da história, os interesses dos Estados Unidos são contraditórios entre si e nem sempre são compatíveis. Nem tudo é ouro sobre azul para Washington "south of the border".

Tradução de Clara Allain

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