São Paulo, terça-feira, 21 de outubro de 1997
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Um magnífico desempenho

LUIZ AUGUSTO SOUTO MAIOR

O presidente Bill Clinton completou na Argentina a etapa final de uma das viagens mais delicadas de um alto mandatário dos Estados Unidos à América do Sul.
Em contraste com ocasiões anteriores, em que um presidente americano era cortejado por seus anfitriões como um potencial portador de benesses, cabe ao atual persuadir os sul-americanos das excelências do seu projeto regional -o estabelecimento, até 2005, de uma área hemisférica de livre comércio, a Alca, nos moldes do Nafta, que hoje une os três países da América do Norte.
Em tese, os países visitados por Clinton -Venezuela, Brasil e Argentina- estão comprometidos, desde a Cúpula das Américas, em 1994, com a idéia geral de uma área de integração de âmbito continental, a ser negociada até 2005. Nesse sentido, poder-se-ia supor que o presidente americano tinha a suave tarefa de convencer países já convertidos ao seu próprio credo.
Há, porém, uma enorme diferença entre aceitar uma data para a efetiva implantação de uma área de livre comércio já negociada e aceitar aquela mesma data como meta para o término das negociações respectivas -as quais podem levar à aprovação de um cronograma de implantação mais ou menos longo ou, simplesmente, fracassar.
Afinal, quem se dispõe a entrar numa negociação o faz na suposição de que ela lhe permita obter, pelo menos, certos objetivos considerados essenciais, sem os quais é preferível não ter acordo.
Mas, não bastava ao mandatário americano mostrar aos seus interlocutores os méritos do seu projeto -precisava também convencê-los da sua capacidade de realizá-lo. Para tanto, era preciso assegurar que o eventualmente negociado pelo Executivo americano não seria desfigurado por emendas do Legislativo, isto é, tornava-se necessário dispor do procedimento chamado de via rápida ("fast track"), pelo qual o Congresso pode aprovar ou rejeitar, mas não emendar, os acordos de livre comércio que venham a ser negociados.
Como dele ainda não dispunha, Clinton pouco podia oferecer de concreto aos seus anfitriões na área do intercâmbio intra-regional. Assim, sua missão tornava-se ainda mais complexa. Cabia-lhe persuadir os seus interlocutores dos méritos de um projeto que ainda não tem poderes para realizar e utilizar a viagem como instrumento adicional para convencer o Congresso do seu próprio país a conceder-lhe tais poderes.
Nessas circunstâncias, era difícil até explorar eventuais diferenças de posição entre os seus três anfitriões, mas particularmente a Argentina e o Brasil, países-chave do Mercosul, o qual é percebido em Washington como uma pedra no caminho da Alca.
Com relações comerciais muito mais diversificadas geograficamente, um empresariado convencido de que qualquer abertura comercial para os Estados Unidos deve ser precedida da remoção das barreiras que aquele país impõe a várias das nossas exportações, e um compromisso prioritário -econômico e político- com a construção do Mercosul e a integração sul-americana, o Brasil é de longe o mais cauteloso quanto à forma de execução da Alca, cuja idéia geral declara aceitar. E seu peso na América do Sul não pode ser subestimado. A viagem ao Brasil era, pois, crucial para o conjunto da missão de Clinton.
Cabe reconhecer que o presidente americano desempenhou-se magistralmente. Confrontado com o ambiente desfavorável criado, antes da sua chegada, por uma conjugação de arrogância americana e suscetibilidade nossa, esbanjou simpatia, massageou o ego brasileiro e não hesitou em desautorizar seus subordinados que haviam contribuído para o mal-estar.
Em manifestações públicas sobre questões de fundo, foi cuidadoso, mandando recados implícitos para congressistas americanos e empresários brasileiros, mas evitando ferir sensibilidades: as exportações americanas para a América Latina cresceram "mais de 100%" desde 1990; os Estados Unidos compram mais do Brasil do que toda a América Latina; o Mercosul (posição nova) "contribui para o objetivo comum" da Alca em 2005.
Em suma, Clinton cedeu graciosamente no adjetivo para preservar o substantivo. Como brasileiro, não lhe desejo bom êxito na sua missão, mas admiro-lhe o magnífico desempenho.

Luiz A. P. Souto Maior, 69, é embaixador aposentado do Ministério das Relações Exteriores. Foi embaixador do Brasil junto às Comunidades Européias (1977-84), no Peru (1984-87) e na Suécia (1987-90).

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