São Paulo, terça-feira, 21 de outubro de 1997
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Liberdade poética caracteriza cinema do autor

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DO MAIS!

Jean Cocteau recebeu um prolongado aplauso em vida. Foi um dândi consumado das artes francesas. E transitava entre umas e outras como entre salões de um palácio que ele houvesse construído, com um tanto de horror e outro de narcisismo, para si e para os outros. Um palácio que talvez levasse o nome de: beleza.
Não chegava a ser um refúgio, mas um lugar no mundo que lhe permitia ajustar o século cruel ao seu olhar delicado e intranquilo, e onde ele acomodava os barulhos vanguardistas com os ecos do classicismo grego, o boxe e o jazz com os baús da cultura e européia.
Disse: "Meu grande compromisso é o de viver uma atualidade que me convenha e que anule o tempo. Tendo descoberto que esse estado era privilégio meu, aperfeiçoei-me e mergulhei mais nele".
Seria uma busca inútil, a da beleza? Cocteau, que viveu duas guerras mundiais, não pensava assim. Ela deveria estar em algum lugar: seria uma reminiscência, um estado, um estalo, um mito a ser permanentemente atualizado.
Talvez seja mais fácil esquecer Jean Cocteau do que se confrontar com sua obra. Foi o que se fez: colocou-se de lado este poeta excepcional e sua intrigante extemporaneidade -e que, por ironia, esteve no centro das rupturas modernas.
Boa parte da crítica de cinema fez pior ainda. Apesar de Cocteau ter privilegiado o cinema com seis grandes filmes (que serão exibidos agora em São Paulo numa ordem caótica), todos eles foram classificados nos tópicos mais extravagantes da sétima arte.
Mas nenhuma das artes em que perambulou foi tão apropriada como o cinema para que Cocteau pudesse enfrentar as contradições de sua obra e nós alguns de nossos próprios dilemas.
Com seu realismo teimoso, o cinema lançava Cocteau no mundo feio. E o poeta redobrava sua maestria para achar, num átimo que fosse e por meio de experimentações incansáveis, o sublime. Para ele, cinema era o jogo da Bela e da Fera.
Em seu primeiro filme, "O Sangue de um Poeta" (1930), Cocteau se vale do surrealismo e seus rudimentos psicanalíticos para fazer uma genealogia da vocação poética. A partir daí, os críticos apressados passaram a dizer "surrealismo" para Cocteau. Mas o que permanece em sua obra é a inusual liberdade poética com que trata o cinema e que o autoriza criar imagens tão surpreendentes como a dos mensageiros da morte em motocicletas em "Orfeu" (1950) ou as tantas invenções de "O Testamento de Orfeu" (1960), sua obra-prima (com Jean Marais, Cocteau, Picasso, Yul Brynner, Françoise Sagan e Brigitte Bardot).
Em "Les Parents Terribles" (1948), levou às telas uma de suas peças mais famosas, um excepcional "vaudeville trágico" sobre a crueldade do amor materno. O filme é também prova de seu domínio do timbre realista do cinema.
Teria Cocteau se "espalhado" pelas artes a fim de evitar o dilaceramento de cada uma delas neste século em que a poesia suportaria o silêncio de Valéry, a pintura a insaciabilidade de Picasso e o teatro a agonia de Beckett?
Mas que pecado, afinal, pode haver em ter sido o último a acreditar completamente que esta época ainda poderia conviver com aquilo que um dia foi chamado de beleza?
Foi sobretudo no cinema que Cocteau pôde lutar contra a morte.

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