São Paulo, quinta-feira, 23 de outubro de 1997
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Civis culpam o Exército pelos massacres

IGOR GIELOW
DO ENVIADO ESPECIAL

Os sobreviventes dos dois maiores massacres ocorridos desde que a violência política irrompeu na Argélia em 1992 culpam o Exército do país pelas mortes. A Folha visitou ontem as localidades de Sidi Rais e Bentalha, ao sul de Argel, e ouviu histórias semelhantes sobre o comportamento dos militares durante as chacinas.
Sidi Rais, 29 km ao sul da capital argelina, foi a primeira parada. É uma comunidade agrícola, com plantações de frutas (como tâmaras e um tipo de tangerina), que contava ontem apenas com 20% de seus 3.000 habitantes.
"Pelo menos 300 morreram no massacre e o resto fugiu. Ficamos só nós, os homens, para garantir a propriedade e a lavoura", afirmou Mohammed Alliche, 53, que falou com os jornalistas à frente de sua "propriedade": um sobrado de alvenaria semidestruído e incendiado durante o ataque da noite de 29 de agosto passado.
Alliche conta como 16 membros de sua família foram mortos dentro da casa, incendiada depois da matança. "Eu escapei por trás e chamei os soldados. Eles disseram que não dava para vir."
Outra versão
Os militares em questão são os membros da guarnição que fica a apenas dois minutos a pé do local do massacre. Ontem, nenhum deles quis falar com a imprensa. Segundo os soldados que acompanhavam os jornalistas, "eles estão traumatizados".
A versão de Alliche é outra: "O Exército está por trás das mortes". Por quê? "Nós todos votamos no FIS (Frente Islâmica de Salvação) em 90 e 91", resumiu.
A bandeira nacional no teto da casa destruída, Alliche conta reservadamente, foi uma imposição dos militares antes da visita dos jornalistas -ele, e a casa onde sua família foi massacrada, foram escolhidos como "atração" de Sidi Rais para os estrangeiros.
Sonho europeu
No caminho de volta a Argel, o comboio pegou um desvio em Sidi Moussa e chegou a Bentalha (22 km ao sul da capital).
Lá o clima é outro. Enquanto Sidi Rais é uma comunidade rural relativamente pequena, Bentalha (pronuncia-se "bêntalra") é parte daquilo que se poderia chamar de Grande Argel.
Lembra a periferia paulistana, com dezenas de crianças em idade escolar vagando pelas ruas. Muammar é uma delas. Com 12 anos, ele fala um francês razoável e arranha espanhol e inglês.
"Meu pai morreu. Minha mãe também. Agora tenho que me virar para ir à Europa ser alguém", diz Muammar, lembrando que seu pai visitava frequentemente um irmão na França.
Todos foram degolados no dia 22 de setembro, no massacre mais notável no exterior devido à foto de uma mulher que procurava um parente em Argel -cuja plasticidade de Madonna rendeu primeira página em jornais do mundo todo.
"Eles gritavam 'eu sou do Exército' para poder entrar nas casas", lembra Abub Elias, 33, sobrevivente. No quarteirão onde Elias mora, 44 pessoas foram degoladas -em toda Bentalha, cerca de 250 morreram, embora o governo fale em "apenas" 98 vítimas.
A ação começou por volta das 23h. "Eu corri para chamar a polícia", afirma. Assim como em Sidi Rais, há um quartel do Exército e da Gendarmerie (polícia militarizada) ao lado do local dos massacres.
'Ruas minadas'
Elias, assim como outras vítimas, contam o ocorrido sem emoção.
"Os primeiros soldados chegaram 15 minutos depois que tudo começou. Ficaram na ponta da rua. Depois, disseram que não podiam entrar porque a rua tinha sido minada", afirmou Elias.
Os militares presentes corroboraram a versão, mostrando uma árvore incendiada onde teria explodido uma mina. Só não explicaram como as minas teriam sido plantadas no asfalto empoeirado da entrada da rua.
Sem os militares agindo, alguns civis resolveram se defender por conta própria, como o mecânico aposentado Bashir Bubar, 64. Apoiado em sua bengala, ele conta como matou um dos terroristas que foram pegos em sua rua durante o ataque.
"Ele estava contra o muro e eu atirei, com minha escopeta, em seu peito", diz, mostrando as marcas de sangue na parede. "Não limpamos essas para mostrar nossa honra."
Embora respeitado, Bubar é uma exceção na região. Ele é um socialista que tem saudade dos tempos de Ahmed Ben Bella (que, em 1962, assumiu a Presidência da Argélia independente). "Odeio a FIS. Eu vou votar na FLN (Frente de Libertação Nacional, partido fundado por Ben Bella)."
Nos dois massacres os suspeitos usavam roupas no estilo afegão, com a cabeça coberta. Isso reforça a tese de que antigos combatentes islâmicos do Afeganistão estejam na Argélia -por outro lado, é uma boa forma de dissimular a verdadeira identidade dos atacantes.
Acusados
No caso de Sidi Rais, o dedo acusador aponta para o radical GIA (Grupo Islâmico Armado), mas a conivência militar é estranha. Em Bentalha, por outro lado, a forte presença islâmica sugere que as milícias armadas pelo governo possam estar por trás das mortes.
O Exército distribuiu, nos últimos quatro meses, 25 mil fuzis Kalachnikov para líderes comunitários em aldeias ameaçadas pelos islâmicos. Não se descarta a possibilidade de eles terem vingado mortes ocorridas em suas famílias atacando redutos fundamentalistas.
"Quem fez pouco importa, pelo menos para eles", afirma o soldado Ahmed, que acompanha a reportagem, apontando para a enorme faixa de terra revolvida e lápides recém-colocados do cemitério de Baraki, entre Sidi Rais e Bentalha. A frase de Ahmed encerra também outro fato: é virtualmente impossível crer que alguém será julgado por aquelas mortes.
(IG)

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