São Paulo, sexta-feira, 24 de outubro de 1997
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Feliz como pinto na lata do lixo

GERALD THOMAS
EM NOVA YORK

Acordei feliz da vida. Meu único propósito hoje era o de ser coadjuvante, um extra, nesse filme diariamente monumental, chamado "New York", "Manhattan", "Babylon", ou, simplesmente, "The City". É um filme rodado todos os dias, no qual cada "take" é uma preciosidade, uma jóia "ineditável", e, por isso, ninguém se cansa dele. Somos milhões de extras nesse filme. Todos temos algo em comum: o nosso papel consiste única e simplesmente em subverter o pensamento clássico de Descartes: aqui a frase virou "penso, logo faço coisas". Ou "faço coisas, logo existo".
E que "coisas"! Cada um desses extras vem de uma parte diferente do mundo e manifestam, interpretam aqui, muito peculiarmente, o conceito mais travesso, o mais trapaceiro, o mais perverso de todos, aquele que chamamos de "democracia". Claro, colocado assim, o filme parece ser um multicoro desafinado de egos exercitando seus solilóquios. No fundo é isso mesmo a atonalidade de Schoenberg, de Cage e de Schtockhausen na mais perfeita "harmonia". E essa é a graça da coisa.
Mas ainda estou em casa, em Williamsburg. Manhattan fica do outro lado do rio. Olho pelo canto da janela e a cidade está gloriosa, convidativa. Debaixo de sol ou neve, o "skyline" de Babylon e o termômetro exato da temperatura do mundo, o barômetro do que está por vir. Não tomei café de propósito pois eu queria escrever essa coluna diretamente do meu café preferido, o "Untitled Space Expresso Bar", na Greene Street, Soho, um microcosmo ainda mais específico de Manhattan, um pequeno santuário onde representantes de todas as fracionadas elites culturais se confraternizam diariamente num estranho ritual: todos sentados em mesas separadas se olham, se fitam à distância, como uma espécie rara de predadores mansos querendo se checar.
Para que ir lá? Pois no meio dessa guerra incrível de egos, o que se encontra é a mais absoluta paz. É como uma tenda da Cruz Vermelha Internacional no meio da Bósnia. Aqui todos querem trégua. Por ora.
Lá tem de tudo, desde os diretores aos "videomakers" aos compositores minimalistas, pintores, escultores e escritores, todos tentando "fazer coisas" para se justificarem vivos. Sem saberem, estão movimentando o planeta inteiro.
Sim, porque nesse microcósmico Expresso Bar (o lugar aliás é enorme, com mais de mil metros quadrados), uma equipe de TV japonesa filma tudo. Fotógrafos da Polônia clicam cada mil metros quadrados. Um típico pintor pictorial italiano estacionou seu cavalete num dos cantos e substituiu a musa por três meninos (em mesas separadas) com seus laptops dialogando com a "Web". Atrás deles, um jovem pintor de vanguarda degusta seu café, enquanto o velho figurativista o inclui no quadro, obviamente sem saber que o jovem é seu mais ativo antagonista. Imaginem que tese da Sorbonne isso poderia dar!
Mas ainda não saí de casa. Para chegar ao "Untitled Space", preciso antes passar pelas dezenas de obstáculos impostas a um mortal de Williamsburg, como eu. A ponte é o primeiro problema. Só que hoje resolvi aceitá-los como sendo dádivas de um deus qualquer que permite, há tanto tempo, que eu participe desse épico.
Assim que atravesso a ponte de Williamsburg, as cenas começam. Dez metros para a direita, uma blitz policial na Delancey Street deixa dois hispânicos com as mãos para o alto, revistados da cabeça aos pés (técnica de Giuliani para reeleição). Culpados ou não (de alguma coisa), fica registrado o show. São quatro carros da polícia com suas sirenes ligadas e suas luzes alucinantes refletidas nas vitrines.
Um pouco mais adiante, três carros de bombeiros e uma ambulância estão de partida depois do que parece ter sido um alarme falso. A calçada está cheia, lotada de compradores, de consumistas, desde chineses ou judeus ortodoxos até os jovens que vêm aqui fuçar as barganhas.
Uma filmagem dentro da déli judaica Rattners está atravancando ainda mais o trânsito. São, literalmente, uns sete trailers enormes estacionados perto da calçada, lotados de refletores e instrumentos. Garotões de walkie-talkie na mão tentam dar ordem ao trânsito caótico. Não adianta. Todos buzinam.
"Mas por que não arranjam outra hora pra filmar?", berra o russo no carro vizinho. "Mas por que não trabalham à noite?", berra um dominicano do outro lado. A resposta é simples. Manhattan precisa ser documentada, atazanada, provocada o tempo todo. Nesse momento existem, com certeza, umas dez equipes como essas espalhadas pela cidade inteira. E de todas as nacionalidades. Aqui nesse lugar, o protagonista absoluto é Manhattan. E quem discutir com ele é otário. Como toda estrela, ele quer as coisas dele no momento exato em que quer as coisas dele. Nós, moradores, não passamos de ajudantes de sua histrionice.
Chego finalmente ao bar. O lugar está quase vazio. Também pudera, ainda é cedo e as elites ainda dormem. Um intelectual está com o "New Yorker" na mão, aberto na página que traz um artigo brilhante (e hilariante) sobre Marx, o fracasso do comunismo e o sucesso do capitalismo (do qual Marx era o verdadeiro estudioso).
Numa mesa mais afastada, umas meninas discutem entusiasticamente o filme "Boogie Nights", que não pára de ser elogiado pelas publicações militantes, ideológicas, como o "Voice" ou o "Paper". Engulo meu café (Java, safra do ano passado, torrefação imediata), escrevo o início da coluna e tento sair dali.
Aproveito para pegar a matinê de "Boogie Nights".
Saio do cinema flutuando, depois de ter me divertido durante uma hora e meia com a década de 70, a "adolescência" depois da "infantilidade" gloriosa dos anos 60. O personagem principal é o "pênis" do protagonista. Explica-se: ele é um ator de filmes pornográficos muitíssimo bem-dotado. Mas a década da cocaína acaba o transformando num desastrado fracasso. Nenhum ator no filme, exceto Burt Reynolds (lindo e magnífico), parece ser um ator de cinema. De volta ao "Untitled Space", noto que nós, os extras, temos muito mais cara de ator do que esses atores. Eu quis sentar no meio-fio para rir de tudo o que fomos. Tanto a cidade quanto "Boogie Nights" são filmes do cacete! A mensagem comum a ambos: não enlouqueçam com as ideologias, com a xenofobia, com as preocupações nacionalistas. Relaxem. Estamos em plena entressafra. Pareço feliz como pinto na lata do lixo.

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